terça-feira, 30 de junho de 2015

O homossexual ou A dificuldade de se expressar (RJ)

Foto: divulgação





Renato Carrera em brilhante interpretação

“O homossexual ou A dificuldade de se expressar” está em cartaz no Teatro de Arena do Espaço SESC Copacabana como parte da Ocupação Copi. O texto foi escrito pelo argentino Raul Damonte Botana (1939-1987), mais conhecido por Copi, escritor, desenhista e performer que viveu na França de 1963 até sua morte. Lançado em 1971, o texto expõe algumas situações-limite vividas por transexuais vitimados pelo preconceito. O humor negro e as situações absurdas pautam a discussão sobre identidade de gênero, vivência da sexualidade e valores morais, temas ainda muito caros à nossa época. Dirigida por Fabiano de Freitas, a montagem traduzida por Giovana Soar e encenada pelo grupo Teatro de Extremos impõe alguns desafios ao texto original, mas é uma ótima oportunidade de conferir o excelente trabalho de interpretação de Renato Carrera. A programação da Ocupação Copi vai até 8 de julho com várias atividades sobre a obra desse artista especial.


Por serem transexuais, Irina (Mauricio Lima) e a Senhora Simpson (Renato Carrera) estão exiladas na Siberia, perto dos Gulags para onde elas seriam fatalmente enviadas caso continuassem na parte europeia da União Soviética. Os Gulags (Administração Geral dos Campos de Trabalho Corretivo) foram campos de concentração criados no século XVII, mas que, de 1934 a 1980, foram o destino final de centenas de milhares de presos políticos do regime comunista russo. Considerado crime pela lei soviética, a homossexualidade foi o motivo da morte de mais de 50mil homens nesses campos. O texto provavelmente foi motivado pelo sucesso dos romances iniciais de Alexander Soljenítsin (1918-2008), um dos sobreviventes, que foi vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1971.

A peça começa quando a Senhora Simpson descobre que Irina não frequenta as aulas de piano de Madame Garbo (Leonardo Corajo) há seis meses, embora diariamente tenha ficado fora de casa, onde a temperatura chega a 40ºC negativos. Irina, que chama a Senhora Simpson de Mãe, confessa que tem ocupado suas tardes com aventuras sexuais com desconhecidos e que agora está grávida. Madame Garbo, depois de se separar de seu marido, o Oficial Garbenko (Higor Campagnaro), aparece dizendo estar apaixonada pela aluna Irina. Juntos todos analisam a viabilidade de uma fuga para a China, onde também há uma ditadura comunista. A história, enquanto se estabelece por quebras de paradigmas de toda sorte, vai revelando as zonas limites onde esses seres humanos coexistem. Em outras palavras, ao partir de contextos como a troca de sexo e a gravidez, o calor e as baixas temperaturas, o exílio e a perseguição, as relações familiares e o passado obscuro, a narrativa deixa ver o não-lugar dos transexuais. Expulsos de seus corpos inconformes para outros igualmente conflituosos, vão de uma ditadura à outra, fugindo de inimigos que nunca deixam de aparecer e fazendo amigos em quem nunca se pode confiar.

A encenação de Fabiano de Freitas, assistido por Pedro Uchoa, dificulta a fruição do leitor porque devolve ao texto nova carga de absurdo que a dramaturgia, por si só, já tem. As barbas e os pelos nos corpos dos intérpretes criam terceiras dúvidas a respeito dos personagens transexuais. O figurino de Antônio Guedes, mais uma vez composto por uma justaposição de peças de toda ordem, redunda no palco a falta de lógica que os diálogos já defendem. O cenário de Pedro Paulo de Souza, formado por tubos sustentados no teto em redor da arena, nem dá a ver o frio da Sibéria, nem o calor do “esconderijo” que o lar da Senhora Simpson e de Irina representa para elas. Entrecortada, a luz de Renato Machado é positiva por valorizar as relações entre os personagens, mas, como o cenário e o figurino, não define bem o quadro geral. A direção musical de Gustavo Benjão é excelente

Fabiano de Freitas, que faz uma modesta participação como General Pouchkine, tem ótimo trabalho de direção de atores. Higor Campagnaro (Oficial Garbenko) e Leonardo Corajo (Madame Garbo) apresentam construções fortes, com posições firmes e ações claras ao longo da narrativa. Os dois reagem ao jogo de maneira pontual, sustentando em alto nível o ritmo excelente da encenação. Mauricio Lima faz do comportamento autodestrutivo de Irina não um meio de representar a loucura, mas permite que, através dela, o público perceba quão louca é a sua vida. Eis aqui uma belíssima poética! É no trabalho de Renato Carrera (Senhora Simpson) que estão os melhores valores dessa produção. Com habilidade, o ator faz dos sons mais sutis um aberto convite à atenção. Seu corpo, sua voz, seu gestual e seus movimentos estão íntegros na viabilização de uma estrutura sólida através da qual o público conseguirá chegar à complexidade de sua personagem. É vibrante conferir tão potente performance.

Com um passado obscuro e com um futuro igualmente pantanoso, os personagens de “O homossexual ou a dificuldade de se expressar” despertam reflexões essenciais às sociedades que visam se tornar mais humanas e, portanto, menos preconceituosas. O humor negro dos diálogos imagéticos e das situações escatológicas pode fazer vir à tona a insensibilidade diante da tragédia social que Copi denunciou. O título desse espetáculo exige uma reflexão: uma vez que os protagonistas são transexuais (homem em quem o gênero do seu corpo não é o mesmo de quem o habita), a quem se refere o termo “Homossexual” (homem que se interessa sexualmente por pessoa do mesmo gênero)? Não seriam essas nomenclaturas a expressão de um limite para a linguagem entre os homens no pensamento visionário do autor aqui homenageado? Vale a pena conferir a Ocupação Copi. Parabéns!

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Ficha técnica:
Texto: Copi
Direção: Fabiano de Freitas
Tradução: Giovana Soar
Com: Higor Campagnaro, Lenardo Corajo, Mauricio Lima, Renato Carrera e Fabiano de Freitas
Direção de Movimento: Marcia Rubin
Luz: Renato Machado
Figurino: Antônio Guedes
Direção Musical: Gustavo Benjão
Cenário: Pedro Paulo de Souza
Pesquisa Visual: Evee Avila
Assistente de direção: Pedro Uchoa
Gestora de Projetos: Maitê Medeiros
Produtor Assistente: Fellipe Marques
Produção Quintal - Direção Geral: Verônica Prates

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