quarta-feira, 27 de maio de 2015

O Narrador (RJ)

Foto: divulgação

Diogo Liberano

Para o grande público se emocionar


“O Narrador”, monólogo de Diogo Liberano em cartaz na Sala Multiuso do Espaço Sesc Copacabana, tem alguns méritos estéticos, mas valores ainda maiores como resultado de uma interessante pesquisa dentro do campo das artes cênicas. Partindo de memórias acumuladas pelo seu autor, a dramaturgia resulta de reflexões sobre o ensaio “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov” escrito em 1936 pelo teórico alemão Walter Benjamin (1892-1940). Nesse sentido, não basta perceber a história dita em cena, mas é preciso ir além e observar as intenções do espetáculo e o modo como ele sugere que a plateia possa se relacionar com ele. A ver! 

Compreender as bases do texto no qual Diogo Liberano se baseou para escrever "O Narrador" é fundamental para perceber o espetáculo mais profundamente. O ensaio de Walter Benjamin tinha, entre outros objetivos, o de defender o escritor russo Nikolai Leskov (1831-1898), autor de várias obras, entre elas “Lady Macbeth do distrito de Mtsensk” que, transformada em ópera pelo compositor Dimitri Shostakóvich, foi censurada por Josef Stalin, então líder da União Soviética. No texto, o teórico alemão analisa a obra de Leskov que, embora contemporâneo de Tolstói e de Dostoiévski, não teve o mesmo reconhecimento desses, sendo sua literatura considerada “menor” devido ao excesso de apelos à emoção, à margem das tendências e negativamente popularesca. Benjamin, levemente associado à Escola de Frankfurt, se distancia de seus pares por encontrar, nos reflexos da indústria cultural, não um fator negativo (como seu discípulo Theodor Adorno), mas um ponto de resistência. Para ele, Leskov, que escreveu para as massas, era um narrador nato porque perpetuava a experiência coletiva, isto é, aquela que passa de pessoa para pessoa, aquecendo a cultura do grupo. Quando, no capítulo onze, Benjamin diz que “a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar”, ele está exortando a relação entre a narrativa e a vida natural. Em outras palavras, os personagens de Leskov matam e morrem porque isso é natural, é próprio do homem, e, portanto, a obra não deveria ser considerada “burguesa” ou “vulgar” como Stalin avaliou. Usando as palavras do russo, que dizia que “a literatura não é para mim uma arte, mas um trabalho manual”, o alemão argumentava em favor da tese de que o aspecto reproduzível da arte é a sua chance de acessar o indivíduo e permanecer na contemporaneidade. A peça “O Narrador” não adapta as obras de Nikolai Leskov, mas pode ser vista como uma resposta teatral ao ensaio precioso de Walter Benjamin. Por isso, é tão interessante.

Em um resumo rasteiro, performance é um tipo de teatro em que o limite entre ator e personagem não fica suficientemente claro para o espectador. Em outras palavras, diante de um espetáculo performático, o fato de não se saber se o que acontece em cena é ficção ou é realidade importa muito. Diogo Liberano, com habilidade, sustenta essa dúvida, entrando pela mesma porta por onde o público entrou, vestindo um figurino similar ao que a plateia veste, lendo o texto como um não-ator leria. Nada é por acaso: suas marcas são um convite para uma identificação mais rápida. Sentado ao lado de um urso de pelúcia, Diogo Liberano lê uma história escrita em primeira pessoa cujo personagem tem nome e sobrenome iguais aos seus. Na infância, o velório da avó materna propiciou o primeiro contato com a morte. Dez anos depois, o falecimento do avô coincidiu com a autoria de um conto cuja protagonista se suicidava, jogando-se pela janela. Um ano depois, sua melhor amiga, leitora do referido conto, dá cabo de sua vida através do mesmo artifício. Justapostos, os encontros do protagonista com a morte levam facilmente a plateia mais sensível ao choro, despertando no público um tipo similar de recepção que os leitores tinham às obras de Leskov.

“O Narrador”, acessível ao grande público, se utiliza de referências culturais para permitir à audiência novos níveis de fruição sem de todo afastar-se dela. Dessa forma, o quadro “Icarus”, de Matisse; o teatro da morte, de Tadeusz Kantor; as citações às diferenças entre as figuras de linguagem metonímia e metáfora; a imagem da sacola plástica voando (que encerra o filme “Beleza Americana”); coexistem com menções à internet discada, ao Fotolog, ao inhame, ao réveillon em Copacabana, entre outras. Fluída, a narrativa aproxima o público do espetáculo sem pedir que ele se esqueça de que é público (como o teatro de Brecht que Walter Benjamin tanto valorizava), mas ainda sim se mostra capaz de conduzi-lo a uma boa história que o emociona.

O que Walter Benjamin disse sobre a obra de Nikolai Leskov (e que também diria sobre Romero Britto) pode ser dito sobre a performance “O Narrador”, de Diogo Liberano: seu maior mérito é atingir o grande público e permitir ao teatro que ele permaneça na agenda das pessoas. Parabéns!


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Ficha técnica:
A partir do ensaio de Walter Benjamim: “O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”
Dramaturgia e Performance: Diogo Liberano
Composição musical “Angel”, de Rodrigo Marçal
Colaborações artísticas: Adassa Martins, Caroline Helena, Flávia Naves, João Pedro Madureira e Natássia Vello
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Produção: Clarissa Menezes e Thiago Pimentel
Realização: Teatro Inominável

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