sexta-feira, 13 de março de 2015

Salina (a última vértebra) (RJ)


Foto: divulgação

Ariane Hime em cena


O começo áureo de 2015 no teatro carioca

No teatro carioca, o ano de 2015 começa com “Salina (a última vértebra)”, o melhor espetáculo em cartaz nesse verão. Dirigida por Ana Teixeira e por Stephane Brodt, a nova produção do célebre Amok Teatro é a primeira montagem de um texto do dramaturgo francês Laurent Gaudé no Brasil. Escrito em 2003, ficaram mundialmente famosas as montagens dirigidas pelo griot e ator malinense Sotigui Kouyaté (1936-2010) no fim de sua vida. Localizada em algum ponto da África ancestral, a história é um épico em torno de Salina, uma mulher que viu seus sonhos ruírem e está sedenta por vingança. Constituído a partir de intenso processo de seleção de atores, o elenco integralmente formado por atores negros, embora desconhecido do grande público, apresenta excelente trabalho de interpretação principalmente em Ariane Hime e em Tatiana Tibúrcio. O desenho de luz de Renato Machado, o cenário e o figurino do casal de diretores e toda a trilha sonora composta e interpretada ao vivo em cena por Fábio Simões Soares garantem ao espectador momento de rara beleza. Eis aqui um espetáculo precioso!

“Salina (a última vértebra)” começa com a entrada de Mama Lita (Luciana Lopes) levando roupas para serem lavadas longe do rio. Tratam-se dos lençóis usados na cama em que uma mulher perdeu a virgindade em sua noite de núpcias. Aquele sangue não pode sujar o rio de onde a comunidade local retira a sua água. Na história, todos esperam que a jovem Salina (Ariane Hime), adotada por Mama Lita, sangre sua primeira mocidade para depois, já mulher, sangrar também sua virgindade no seu casamento com o nobre guerreiro Saro Djimba (André Lemos), de quem ela não gosta. A melhor cena do primeiro ato se dá quando Salina vai procurar Khaya Djimba (Tatiana Tibúrcio), sua futura sogra, para pedir que ela interceda no seu caso. Almejando algum poder sobre sua própria vida, a jovem prometera-se em casamento para Kano Djimba (Thiago Catarino), irmão mais novo de Saro. Como nas melhores tragédias - gregas, clássicas e contemporâneas -, o homem que não se submete ao destino sofre as penas de sua rebeldia. Diferente do que havia sonhado, a vida no clã dos Djimbá é marcada pelo sangue, pelas derrotas, pelas agressões. Fora dele, a poeira do deserto seca as lágrimas de Salina e leva embora sua juventude enquanto o desejo de vingança a sustenta através dos tempos. O segundo ato (e o subtítulo) se apoia em uma lenda ancestral de que o morto cujo corpo não é inteiramente enterrado não descansará até que todas as suas partes sejam de novo reunidas. Salina cobra sua mocidade com a vértebra de um dos Djimba e novamente o encontro entre a protagonista e sua sogra alçam essa dramaturgia para um dos lugares destaque no teatro universal contemporâneo. Nesse excelente texto, fica a metáfora para um continente arrasado pelas guerras, pela fome, pelas doenças, pela miséria, mas que sobrevive e portanto ainda não se rendeu. E sabe de sua glória. De arrepiar!

André Lemos (Saro Djimba), Reinaldo Junior (Kwane MKrumba), Sérgio Ricardo Loureiro (Sissoko Djimba) e Luciana Lopes (Mama Lita), mas principalmente Ariane Hime (Salina) e Tatiana Tibúrcio (Khaya Djimba) tem trabalhos de interpretação em primeira grandeza na direção de Ana Teixeira e de Stéphane Brodt. O modo como os ombros estão abertos, as posições das colunas nas movimentações, a ordem dos respiros em cada frase, as entonações, inflexões e o empenho no bom exercício da retórica são alguns pontos destacáveis entre tantos que expressam o quão bem feito é esse teatro em todos os seus aspectos. Disposta através de 3h40min de encenação, a narrativa prende a atenção do público na medida em que se revela cada vez mais profunda. Assistida por Vanessa Dias, a dupla de diretores exibe aqui excelente uso do ritmo e das articulações na construção de um texto cênico repleto de símbolos potentes que alcançam o público de todas as raças, crenças e origens culturais.

Os figurinos e objetos de cena apoiam a beleza do texto, das interpretações e da direção, realçando em detalhes a exuberância e a decrepitude desses personagens retratados dentro do estilo trágico. O desenho de luz de Renato Machado atinge novamente excelente resultado no palco do Teatro de Arena do Espaço Sesc Copacabana, onde a peça cumpre temporada. Por um lado, a música composta e interpretada ao vivo por Fábio Simões Soares se apresenta de maneira essencial à viabilização dos símbolos que fincam Salina, Mama Lita e os Djimbas no imaginário coletivo de qualquer público. Por outro, ela garante junto com todos os demais elementos o tom religioso através do qual a história deve ser lida.

A equilibrada articulação de todos os elementos que dão conta da narrativa de “Salina (a última vértebra)” é o que melhor resume os muitos méritos dessa produção. Ana Teixeira e Stéphane Brodt não mágicos, mas apenas bons diretores que souberam escolher um ótimo texto e ótimos pares para a sua equipe, fazendo desse resultado um excelente presente para o teatro brasileiro. Aplausos!

*

Ficha técnica:
Texto: Laurent Gaudé
Direção: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Elenco:
André Lemos, Ariane Hime, Graciana Valladares, Luciana Lopes, Reinaldo Junior, Robson Feire, Sergio Loureiro, Sol Miranda, Tatiana Tibúrcio e Thiago Catarino
Música: Fábio Simões Soares
Luz: Renato Machado
Assistente de Direção: Vanessa Dias
Coreografias: Tatiana Tibúrcio
Cenário e Figurino: Ana Teixeira e Stephane Brodt
Bonecos: Maria Adélia
Tradução: Ana Teixeira

2 comentários:

  1. Esta peça é magnífica, linda e emocioante. Saí chorando, não contive as lágrimas. Não posso deixar de parabenizar a todos que deram vida a cada personagem e toda a equipe que contribuíram para que saísse tudo perfeito. Foi uma das peças mais lindas que já assisti até hoje.

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