sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O Processo (RJ)


Foto: divulgação

Mateus Solano


Joseph K. em nossa sociedade

O maior mérito de “O Processo” é o modo como Leandro Romano e Luiz Antônio Ribeiro atualizam o romance do tcheco Franz Kafka (1883-1924) para o teatro. Publicado depois da morte do seu autor, o livro é resultado de uma edição dos originais feita por Max Brod, amigo e incentivador de Kakfa. Na versão da Companhia Teatro Voador Não Identificado, o grande valor está na forma como é escalado o ator que, por uma única vez, interpretará Joseph K., o protagonista que sofre processo por um crime que ele não sabe qual foi (e nunca chegará a saber). Sem ter ensaiado, nem tido qualquer instrução sobre o que vai acontecer em cena, o intérprete convidado para esse desafio é outro em cada sessão. Assim, para o público, o desconforto do ator é também o desconforto da plateia que frui a história em um contexto bastante próximo do universo kafkiano. Tendo feito temporadas na Sede das Companhias e no Teatro Ipanema, na sessão analisada, Mateus Solano interpretou o papel principal de forma perfeitamente colaborativa com os ideais do projeto. A experiência foi bastante positiva!

Está no espetáculo o mais importante do livro: o desconforto frente a uma situação tão absurda quanto burocrática. Na manhã do seu aniversário, Joseph K. é surpreendido, no quarto da pensão onde mora, por dois investigadores que vêm comunicar que ele está sendo processado juridicamente. O protagonista começa então uma via crucis por tribunais, audiências, por entrevistas com advogados em um roteiro claustrofóbico principalmente porque sem sentido aparente. Não há pistas sobre qual crime foi cometido e é possível duvidar se realmente houve algum. Durante todo o romance, o leitor está junto a Joseph K. perplexo diante do modo como as estruturas de poder podem ser terríveis mesmo no período democrático. As propinas, as barganhas, o jogo de favorecimentos e de influências são peças na narrativa que Kafka assina, construindo uma metáfora surrealista na forma, mas bastante real - e contemporânea - no conteúdo.

Leandro Romano e Luiz Antônio Ribeiro reproduzem, no teatro, uma experiência de fruição bastante paralela a que o leitor pode ter com a obra literária em questão. Sem saber o que vai acontecer, o ator convidado recebe junto com o público as marcas para vivenciar a história de maneira que as surpresas para o intérprete são também as surpresas da audiência. Ambos ficam desconfortáveis, os dois reagem com estranheza à única alternativa possível: conformar-se ao sistema. Pelos méritos dessa adaptação, “O Processo” se torna, nos palcos, tão essencial como é a obra na literatura para entender a sociedade contemporânea. Antes de Mateus Solano, Eduardo Moscovis, Armando Babaioff, Rafael Infante, Julio Adrião, entre outros, também participaram do projeto, interpretando Joseph K..

Matheus Solano colaborou para o sucesso do espetáculo aqui avaliado através da sessão a que essa análise se refere. O grande carisma que esse também talentoso ator tem fez a diferença na viabilização de um bom ritmo para essa narrativa difícil. Com reações aparentemente espontâneas e inicialmente em tom engraçado, substituídas depois por impressões mais contundentes sobre o universo absurdo da história, Solano – como Anthony Perkins na versão para o cinema dirigida por Orson Welles – ajudou a aproximar o enredo daqueles que reconhecem a realidade, mas querem se abster dela quando na plateia de um teatro. Sobre os demais do elenco, apenas Julia Bernat tem algum positivo destaque, contracenando com o protagonista seguramente, dando a ver figuras interessantes. Em péssimo uso de suas vozes, no âmbito do volume, da dicção e das entonações, simplesmente não se ouviu o que Alonso Zerbinato, Amanda Grimaldi, Cirillo Luna, Daniel Passi e Pedro Müller disseram em cena. A bela trilha sonora original de Felipe Ventura e de Gabriel Vaz merecem cuidadosa atenção.

Nos muitos caminhos da burocracia jurídica, “O Processo” dá conta de ser metáfora para uma realidade em que o jogo de poder vence terrivelmente o homem, nos vence terrivelmente. Em nossa sociedade, todos temos um pouco de Joseph K.. Por pautar essa visão da realidade, a Companhia Teatro Voador Não Identificado, aqui em seu melhor trabalho, está de parabéns. Vida longa ao projeto!

*

Ficha técnica:
Concepção: LEANDRO ROMANO e LUIZ ANTONIO RIBEIRO
Direção: LEANDRO ROMANO
Dramaturgia: LUIZ ANTONIO RIBEIRO (baseado na obra de FRANZ KAFKA)
Elenco: ALONSO ZERBINATO, AMANDA GRIMALDI, CIRILLO LUNA, DANIEL PASSI, LARISSA SIQUEIRA DA CUNHA e PEDRO MÜLLER
Cenografia: ELSA ROMERO
Figurino e iluminação: GAIA CATTA e LIA MAIA
Trilha sonora original: FELIPE VENTURA e GABRIEL VAZ
Assistência de direção: JULIA BERNAT
Assistência de cenografia, figurino e iluminação: FERNANDO KLIPEL
Stand-in: FERNANDO KLIPEL e JULIA BERNAT
Consultoria teórica: DANRLEI DE FREITAS
Casting: RENATA MAGALHÃES
Filmagem e fotografia: CLARISSA APPELT, FELIPE XAVIER e ISABEL STEIN
Direção de produção: LEANDRO ROMANO
Produção executiva: RENATA GIARDINI e RENATA MAGALHÃES
Apoio institucional: PROJETO ENTRE e UNIRIO
Realização: TEATRO VOADOR NÃO IDENTIFICADO

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