No centro, Osmar Silveira. |
Viva Cazuza
“Cazuza – Pro dia nascer feliz, o musical” está novamente em cartaz, mas com novidades no elenco. Tendo estreado em outubro de 2013, o espetáculo dirigido por João Fonseca substituiu em sucesso “Tim Maia – Vale tudo”, esse um dos marcos da produção teatral carioca na última década. Assistida por mais de 200 mil espectadores em doze cidades brasileiras, indicada e vencedora de alguns prêmios importantes, a peça celebra a vida e a obra do cantor e compositor Agenor de Miranda Araújo Neto (1958-1990), o Cazuza, um ícone da música brasileira contemporânea. Escrita por Aloísio de Abreu, a dramaturgia teve contribuição fundamental de depoimentos de Lucinha Araújo, mãe do homenageado. Ainda interpretado pelo elogiadíssimo Emílio Dantas, nessa nova temporada, o personagem principal tem sido alternado com Osmar Silveira, dono de um trabalho bastante valoroso que a análise abaixo quer destacar dentre outros pontos relevantes. A produção ocupa o palco do Theatro Net Rio - Sala Tereza Rachel, em Copacabana, Rio de Janeiro.
A primeira impressão que surge é a de que toda história será contada pelo olhar de Lucinha (Stella Maria Rodrigues), através das sensações, das inspirações e dos valores dela. Recorrentes, suas participações chamam a atenção para o personagem. No entanto, ao longo do espetáculo, essa sensação inicial se esvanece. Há outros personagens que também contam a história de forma que a narrativa em primeira pessoa dá lugar ao vulcão chamado Cazuza (Osmar Silveira). Bastante carismático, Cazuza é um personagem que brilha: é lindo, é sensual, é livre, apesar de sua imagem também permitir as críticas de que era mimado, elitista e irresponsável. A dramaturgia de Aloísio de Abreu é cronológica, isto é, os fatos se desenrolam na peça na mesma ordem em que são descritos nas biografias do cantor. A volta ao Brasil, a vontade de cantar e as primeiras apresentações, a constituição da banda Barão Vermelho, os discos iniciais e as turnês pelo país, as festas particulares, o uso de drogas, os encontros afetivos-sexuais, a apresentação célebre no Rock In Rio de 1985, o exame de HIV e o diagnóstico. Como uma explosão de cor e de vida, o primeiro ato explora as canções mais alegres e aquelas sobre amor, as coreografias de Alex Neoral usam melhor o cenário de Nello Marrese, a iluminação de Daniela Sanchez e de Paulo Neném é mais exultante, a direção assina cenas mais rápidas e com articulações mais ágeis. No segundo ato, porém, tudo isso dá lugar a uma outra abordagem com Cazuza e seus pais apresentados em leitos hospitalares em Boston, nos Estados Unidos. “Tocado pela AIDS” (a expressão é linda!) no meio dos anos 80, o personagem, a partir daí, é visto sob uma dimensão muito mais humana. Apesar de uma coreografia de extremo mal gosto na abertura da segunda parte, seguida por outra também de gosto duvidoso, a direção de João Fonseca acerta em optar pelo maior intimismo. Há mais focos fechados, há menos usos dos diversos níveis, as canções são mais políticas, mais ácidas, mais poéticas. De tudo, o mais bonito é ver como aquele personagem brilhante retratado por seu ego muito bem desenvolvido agora parece enfrentar-se a si mesmo e aceitar o fato de que, como todos, precisa lutar pela vida. É nesse ponto que “Cazuza – Pro dia nascer feliz” deixa de ser apenas uma peça sobre um cantor famoso e ganha o direito de ser uma peça sobre todos nós. E é aí que o palco deixa de ser um show e se convida a ser um espelho cuja imagem poderá trazer alguma modificação a quem o vê.
A interpretação de personagens icônicos serve unicamente para fazer o ritmo da narrativa aumentar. A imitação das figuras originais atende a princípios claros: o público precisa identificar de forma rápida o personagem para situar o contexto da cena e para fruir a história que precisa andar agilmente. Nesse sentido, ou os intérpretes imitam bem ou fracassam terrivelmente. “Cazuza – Pro dia nascer feliz” tem más interpretações no elenco secundário, sobretudo em Carlos Leça (que alterna o personagem Ney Matogrosso com Fabiano Medeiros), Dezo Mota (Caetano Veloso) e em Brenda Nadler (Bebel Gilberto), cujos trejeitos superficializam os personagens, tentando tirar proveito de estereótipos grosseiros. Por outro lado, o elenco principal apresenta trabalhos de primeira grandeza. João Fonseca (que alterna o personagem Ezequiel com André Dias), Stela Maria Rodrigues (Lucinha) e principalmente Osmar Silveira (Cazuza) brilham, deixando ver vários níveis em suas apresentações: críticas por trás de seus personagens, ironias e segundas intenções que oferecem várias camadas de percepção. Além disso, com eles, as cenas soam positivamente pulsantes e o jogo, seja no primeiro ou no segundo ato, se estabelece em vasta potência. Isto sem falar na qualidade das vozes de Stela e de Osmar que atendem ao espetáculo com grande beleza. Arthur lenzura (Frejat), André Viéri (Guto), Oscar Fabião (Serginho), Sheila Mattos (Tereza) e Philipe Carneiro (Zeca Camargo), deixando para o texto a maior responsabilidade pela identificação de seus personagens, ajudam a equilibrar elenco tão díspare positivamente.
De acordo com o release, a intenção do cenógrafo Nello Marrese foi a de representar o píer de Ipanema e a areia da praia do Arpoador. Talvez porque a história aconteça quase nunca na praia, ou porque o mar da zona sul carioca e o sol escaldante não sejam vistos de forma mais clara em cena, ou ainda porque os caimentos dos praticáveis são em diagonais e nas bases estejam impressas frases datilografadas de Cazuza, a ideia não se concretizou. Ficou apenas o mérito da possibilidade do palco ser usado em vários níveis de altura, o que, numa produção sem entradas e saídas de ambientes, foi a mínima contribuição da cenografia para o ritmo da narrativa. Os figurinos de Carol Lobato identificam bem os personagens e a época, cumprindo sua função. Os diretores musicais Daniel Rocha e Carlos Bauzys têm ótima parte nos valores do espetáculo, adaptando as canções para a realidade do palco, mantendo firme seus conceitos originais.
“Cazuza – Pro dia nascer feliz” tem parcela de sua renda destinada à Sociedade Viva Cazuza (Fone: 21.25515368), que, aberta por Lucinha Araújo logo depois do falecimento do filho, dá assistência a crianças e a adolescentes carentes portadores do vírus da AIDS. Nesse sentido, assistir à peça não é apenas um modo de divertimento ou um motivo para a reflexão, mas um meio de ajudar a entidade que vive de contribuições espontâneas, fazendo um trabalho de valor inestimável há vinte e cinco anos. À sociedade e, principalmente aqui, ao espetáculo, parabéns.
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FICHA TÉCNICA
Texto: Aloísio de Abreu
Direção Geral: João Fonseca
Produção Geral: Sandro Chaim
Direção Musical: Daniel Rocha
Supervisão Musical: Carlos Bauzys
Preparador Vocal: Felipe Habib
Coreografias: Alex Neoral
Cenário: Nello Marrese
Figurino: Carol Lobato
Visagismo: Juliana Mendes
Design de luz: Daniela Sanches e Paulo Nenem
Design de som: Gabriel D´Angelo
Realização: Miniatura 9, Chaim XYZ Produções
Elenco:
Osmar Silveira (Cazuza, dividido com Emílio Dantas)
Stela Rodrigues (Lucinha Araújo)
Marcelo Várzea (João Araújo)
João Fonseca (Ezequiel Neves, dividido com André Dias)
Carlos Leça (Ney Matogrosso, dividido com Fabiano Medeiros)
Brenda Nadler (Bebel Gilberto)
Arthur lenzura (Frejat)
Igor Miranda(Maurício Barros)
Oscar Fabião (Serginho)
André Viéri (Guto Goffi)
Marcelo Ferrari (Dé Palmeira)
Dezo Mota (Caetano Veloso)
Carol Dezani (Yara Neiva)
Sheila Mattos (Tereza)
Philipe Carneiro (Zeca Camargo)
Maravilhoso, adorei....veria muitas vezes. Ficou uma obra espetacular. O ator Osmar, dia em que fui< deu um show.....nota 10.
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