terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Bonitinha, mas ordinária (RJ)

Foto: divulgação

Ana Moura, Laura de Castro e Julia Schaeffer em cena

Asséptico
Falta sexo nessa “Bonitinha, mas ordinária”, assinada pela Cia. Teatro Portátil. Escrita por Nelson Rodrigues (1912-1980), a peça tem, nessa montagem dirigida por Alexandre Boccanera, interpretações que valorizam o uso da voz, mas quase nenhuma marca de sensualidade, ficando relativamente longe do humor velado que geralmente brota das tragédias rodrigueanas. Com Marcello Escorel, Elisa Pinheiro, Anderson Cunha, entre outros, no elenco, a produção está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro.

Escrito em 1962, o texto “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária” conta a história de Edgard (Guilherme Pinheiro) que, sempre muito pobre, vê enfim uma chance de subir na vida quando Peixoto (Anderson Cunha) lhe oferece a mão de sua cunhada Maria Cecília (Julia Schaeffer). O motivo é simples: o pai milionário, Dr. Werneck (Marcello Escorel), sabe que sua filha não terá melhores opções, após ter sido “currada por cinco negros quando sozinha em um carro enguiçado na estrada para a Barra da Tijuca. O problema é que o coração de Edgard bate por outra pessoa, a vizinha Ritinha (Elisa Pinheiro), professora em um colégio de freiras na Tijuca, que sustenta a mãe e as três irmãs mais novas (Laura de Castro, Ana Moura e Julia Schaeffer). É o cronista mineiro Otto Lara Resende (1922-1992) quem “ajuda” o protagonista. A frase de sua alcunha (ele nega a autoria!) “Mineiro só é solidário no câncer” inspira Edgard a casar-se sem amor, mas pelo dinheiro uma vez que, nesse mundo em que os personagens vivem, ninguém é por nós além de nós mesmos. Dentre os vários méritos dessa dramaturgia, está a forma como Nelson Rodrigues solta as verdades dos personagens: a vida secreta de Ritinha, os detalhes da “curra” de Maria Cecília, os vícios de Dr. Werneck, a culpa de Pacheco, etc. Além disso, há o modo como Nelson, o maior dramaturgo brasileiro, situa as ações ao longo da peça: o cemitério do Caju, a Avenida Niemeyer, o interior dos carros, a praia, etc... Há ainda os significados por trás do título. Com uma personalidade completamente oposta a do dramaturgo, Otto Lara Resende, que nunca assistiu à peça cujo título o homenageava, era católico praticante e, segundo consta, fidelíssimo a sua esposa e filhos. A atriz Tereza Rachel, que completará 80 anos em agosto de 2015, viveu a primeira Ritinha, na montagem dirigida por Martim Gonçalves e que estreou em novembro de 1962.

Nessa montagem dirigida por Alexandre Boccanera,  com co-direção de Duda Maia, esses assistidos por Marcio Freitas, a graça vem como forma e não como conteúdo. Espalhados pelo espaço cênico, sempre sentados no meio do público, com o palco sem coxias, mas coberto por um carpete vermelho e com degraus iluminados com lâmpadas incandescentes, os atores nunca desaparecem. Puxando as atenções para si, ao invés de para o texto, a direção assina uma visão leve e um tanto superficial que é bastante asséptica. Não há o submundo, não há os moralismos que escondem os vícios e que tornam cômicas as situações. Ao invés de se revelarem engraçadas, as personagens já são engraçadas antes de aparecerem, sobretudo em um momento em que todas as luzes se acendem e é como se um show acontecesse. Distante do que parece ter sido o olhar de Boccanera, não é pela fama que Edgard aceita se casar, mas porque reconhece a tragédia do homem sempre sozinho diante das responsabilidades por si. Fria, essa encenação não tem destaques no trabalho do elenco, embora ninguém chegue a defender mal os deliciosos personagens desse texto.

O figurino de Patrícia Muniz talvez tenha a boa intenção de dizer ao público que, independente da classe social ou do bairro onde mora, todo mundo é igual. Essa, no entanto, é outra marca de superficialidade da montagem, pois facilita uma conclusão que poderia ser de todo mérito da audiência. Vestindo todos os personagens de bege (e branco), com detalhes em vermelho a combinar com o carpete, Muniz contribui negativamente para chapamento dessa visão da obra. Já analisado, o cenário tem sua concepção assinada por Mina Quental. O desenho de luz de Aurélio de Simoni tenta criar alguma profundidade na encenação com algum sucesso. Ainda que com algum valor estético, criadas por Beatriz Carvalho e por Diogo Nii Cavalcanti, as animações que ilustram o espetáculo ratificam a avaliação negativa aqui exposta.

Com o centenário do nascimento de Nelson Rodrigues celebrado em 2012, muitas montagens foram feitas a partir de suas obras. Por sua profundidade, complexidade e virtuosismo, nunca é demais bem revisitá-lo. Infelizmente, esse não foi o caso.

*

FICHA TÉCNICA:
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Alexandre Boccanera

Elenco: Ana Moura, Anderson Cunha, Cláudio Gardin, Elisa Pinheiro, Guilherme Miranda, Julia Schaeffer, Laura de Castro, Marcello Escorel, Márcio Freitas e Morena Cattoni.

Co-direção: Duda Maia
Direção Musical e Trilha Sonora: Guilherme Miranda
Cenografia: Mina Quental
Figurino: Patricia Muniz
Filmes de Animação: Beatriz Carvalho e Diogo Nii Cavalcanti
Iluminação: Aurélio de Simoni
Preparação Corporal e Direção de Movimento: Joana Ribeiro e Marito Olsson-Forsberg
Preparação Vocal: Ana Frota
Assistente de Direção: Márcio Freitas
Realização: Cia Teatro Portátil
Produção: Boccanera Produções Artísticas
Produção Executiva: Alessandra Azevedo

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