terça-feira, 28 de outubro de 2014

Uma carta perdida (RJ)


Foto: divulgação
Elenco em cena

Comédia ideal sobre a política atual

“Uma carta perdida” é um espetáculo que se torna ainda mais interessante do que já é pelo contexto em que sua produção aparece: as eleições de 2014. Peça escrita em 1884 pelo romeno Ion Luca Caragiale (1852-1912), uma edição do texto constava na herança deixada ao Tablado pelo professor Bernardo Jablonski (1952-2011). Com nove atores no elenco, o espetáculo surgiu como resultado de uma meritosa campanha de doações organizada através do site Catarse. Em cena, o resultado só não é melhor porque a direção de Daniel Belmonte não imprime ainda no trabalho uma certa dose vital de delicadeza que faria da ironia mais um bom motivo para a comédia. Vale a pena conferir a produção!

Ambientalizada em 1883, em uma pequena cidade da Romênia, no leste europeu, a história se passa nos momentos em redor de uma eleição para deputado. O prefeito Estevão Tipatesco (Adriano Martins) é o candidato favorito, mas vê sua candidatura ameaçada por causa do sumiço de uma carta de amor escrita por ele ao presidente do Comitê Permanente Zoé Thahanache (André Pellegrino). Para seu desfavor, a carta perdida agora está em posse de Nae Catzavenco (André Dale), proprietário do jornal de oposição. O único jeito de abafar o escândalo é, ao invés de se candidatar, apoiar a candidatura do inimigo. No entanto, chega da capital, o escolhido pelo partido: Agamemnon Dandanache (Alexandre Duvivier), aumentando os apuros do prefeito. Em uma trama cheia de reviravoltas, esse vaudeville retrata com muito bom humor uma visão sombria de uma sociedade falida pela corrupção.

A adaptação de Adriano Martins e do diretor acrescenta o elemento da homossexualidade, invertendo os personagens. No original, o prefeito Tipatesco escreveu a carta para a senhora Zoé Trahanache (que, nessa montagem, é o marido), a esposa de Zaharia Trahanache (aqui chamada de Nadja Trahanache). A mudança também valorizou o papel da mulher, dando à personagem Nadja (Bruna Brignol) uma importância que a esposa não tinha. É ela quem coordena a sessão legislativa em uma das cenas finais. Igualmente positiva é a permanência, nessa versão, da briga de forças do texto original entre os liberais e os independentes, bem como suas querelas internas sobre quem o partido vai apoiar e sobre uma suposta traição, desprezando os cidadãos mais pobres, esses personificados nas figuras do policial Pristanda (Pedro Tomé) e do Eleitor (Rodrigo de Arruda). É essa justamente a ponte principal que relaciona esse texto romeno do século XIX com os dias atuais.

A direção de Daniel Belmonte não é tão boa infelizmente. Sem exceção, todos os personagens aparecem com expressões muito exageradas, em movimentos bruscos e a partir de uma sucessão constante de gritos que não cabem no palco em tamanho reduzido do Teatro Café Pequeno. Falta delicadeza, leveza e sensibilidade, essas que construiriam a ironia capaz de evidenciar a ardilosidade da trama de maneira que o tom farsesco ganhasse novos níveis.

Quanto às interpretações, no que diz respeito ao mérito individual de cada construção de personagem, é possível destacar Pedro Tomé (o guarda Pristanda) como aquele que tem o melhor resultado no grupo. O tom escorregadio de sua construção ensaia um malandro tragicamente sem vez na disputa política elevada. Nas demais atuações, é visível que as marcas são maiores que as intenções de forma que os atores antecipam as ações aos motivos que as gerariam.

A direção de arte de Colmar Diniz pontua a concepção farsesca do diretor sobre o tema. O prefeito usa uma casaca do mesmo tecido de que é coberta a parede de seu gabinete. As maquiagens são carregadas, há um expressivo conjunto de informações em cada parte do cenário de Julia Marina e também do figurino de Anouk Van Der Zee, de Raquel Dimantas e de Marianna Pastori. Esse realismo visual é adequadamente bom ponto de partida para o vaudeville. A produção tem ainda ótimas participações da iluminação de Felipe Lourenço e da trilha sonora de Rodrigo Miravalles.

“Uma carta perdida” inicia nova temporada ainda no Teatro Café Pequeno, talvez um espaço pequeno demais para a força dos seus encenadores, claramente interessados em mostrar o seu melhor. O sucesso que a peça tem tido é, sem dúvida, uma resposta do público ao seu empenho, mas também à graça que tem o texto mais famoso de Ion Luca Caragiale. A ver!


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FICHA TÉCNICA
Texto: Ion Luca Caragiale
Adaptação: Adriano Martins e Daniel Belmonte
Direção: Daniel BelmonteIluminação: Felipe Lourenço
Figurino: Anouk van der Zee, Raquel Dimantas e Marianna Pastori
Iluminação: Felipe Lourenço
Pesquisa musical: Rodrigo Miravalles
Cenografia: Julia Marina
Visagismo: Marianna Pastori
Diretor de arte: Colmar Diniz
Chapeleira: Lund Chapéus
Produção: Marina Henriques e Ivan LP
Ass. de produção: Isadora Krummenauer
Design gráfico: Victoria Scholte
Apoio Audiovisual: HM Multimídia

Elenco:
Prefeito Estevão Tipatesco- Adriano Martins
Policial Pristanda- Pedro Tomé
Nadja Trahanake- Bruna Brignol
Zoe Trahanake- André Pellegrino
Farfuridi- João Sant`Anna
Branzovenesco - Daniel Zumbrinsky
Cidadão Embriagado - Rodrigo Arruda
Nae Catzavenco - André Dale
Agamitza Dandanake - Alexandre Mello

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