Paulo Verlings e Marco Nanini no cenário de Daniela Thomas |
Oscar Wilde, Marco Nanini e Jô Bilac: excelente teatro político contemporâneo
Um dos melhores espetáculos
produzidos em 2014, “Beije minha lápide” é o novo texto de Jô Bilac, dirigido
por Bel Garcia e protagonizado por Marco Nanini. Finalizando temporada nos
Correios, a peça vai seguir carreira no Teatro Dulcina, na Cinelândia, ainda no
Rio de Janeiro. No elenco, Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings
integram o elenco, todo ele de já esperados excelentes trabalhos de
interpretação. O cenário de Daniela Thomas é também um dos pontos altos do
espetáculo, cuja dramaturgia se mistura com excertos de Oscar Wilde. Pelos objetivos
nobres, pelos desafios vencidos e pela excelência do resultado, eis aqui uma
peça que exibe mais uma vez o já admirado talento de seus realizadores.
A história da peça parte de um fato
real. Há uma tradição entre os admiradores do escritor irlandês Oscar Wilde
(1854-1900) que é a de beijar seu túmulo, deixando impressa uma marca de batom.
Levando em conta que sua tumba é, desde 1914, uma obra de arte de Jacob
Espstein, a administração do cemitério Père Lachaise, em Paris, achou por bem
proteger a lápide com uma barra de vidro em 2011. Na dramaturgia, Sebastian
(Marco Nanini) é um escritor contemporâneo famoso que, em um momento de
descontrole (?), arrancou a proteção imposta e, assim, pode beijar a lápide de
Wilde, mantendo firme a tradição. Na primeira cena, Sebastian está preso e sua
advogada Roberta (Carolina Pismel) tenta estabelecer um diálogo com o cliente,
buscando bases para a construção da defesa. Na sequência, o espectador
conhecerá também Tommy (Paulo Verlings), o carcereiro; e Ingrid, a guia que
conduz os visitantes nos passeios ao cemitério de Paris.
O primeiro ponto relevante do texto
de Jô Bilac está na requisição de um espectador ativo durante o processo de
fruição da peça. O modo como as informações estão dispostas requer reflexão constante.
Dentre as forças que estruturam a história de “Beije minha lápide”, há o debate
entre o que é legal juridicamente versus a fidelidade aos princípios. Já na
abertura da peça, assim, está a oposição entre o espírito irrequieto de
Sebastian e a visão metódica de Roberta. Em liberdade, a advogada goza de certo
prestígio na profissão e é aparentemente feliz em seu noivado com um médico
otorrinolaringologista. O movimento de discussão sobre qual tipo de proteção
real a tampa de vidro oferece vai, dessa forma, se espalhando, durante a
narrativa, nas reflexões sobre outros elementos: o que está por trás de
Roberta? De Ingrid? De Tommy?
Outra questão interessante ainda
nesse quesito é o ineditismo da obra. Ao longo do texto, várias frases de
Wilde são citadas, principalmente aquelas ditas pelo personagem de Nanini, de
maneira que é notório que estamos diante de uma obra com clara referência ao
irlandês. No entanto, nem “Beije minha lápide” é uma história escrita por
Wilde, nem o escritor aparece em cena personificado. Uma
carta que Sebastian escreve na prisão para sua filha, em uma referência a “De profundis”,
livro escrito por Wilde na cadeia, também ganhará importância ao longo da
narrativa.
A encenação de Bel Garcia,
co-diretora de “Conselho de classe”, outro espetáculo premiado de Jô Bilac,
oferece mais uma questão bastante interessante. Ao situar Sebastian dentro de uma
caixa de vidro, a peça se abre como uma metáfora riquíssima. A prisão do
escritor protagonista tem visível relação com a tampa de vidro do túmulo de
Wilde que, por sua vez, tem proximidade com a condenação do irlandês. Por outro
lado, outro mérito da direção, a interpretação de Nanini para o personagem
Sebastian expressa uma segurança que tem nítida oposição com a dos demais,
tensas quanto ao alcance de seus objetivos.
Em trabalhos menores, Júlia Marini
(Ingrid) e Paulo Verlings (Tommy) expressam bastante sutilmente algumas
variações que dão o tom de seus personagens. Considerando os muitos níveis
semânticos dessa narrativa, o efeito é revelador. Em uma interpretação
confortável, Carolina Pismel evidencia semelhança desta com outras personagens
suas: as falas cortantes, o tom pontual, os movimentos retos, tudo isso
apropriado para sua advogada Roberta. Marco Nanini, com movimentos reduzidos e
entonações próximas do real além da narrativa, dá a ver um Sebastian
carismático apesar de sua ironia, afetação e rabugice.
Aparentemente simples, o cenário de
Daniela Thomas, com vídeos de Julio Parente e de Raquel André, é uma estrutura
bastante complexa tanto tecnicamente como da ordem da construção do sentido. No
vidro, são projetadas imagens florais que expressam o bucolismo de um cemitério
visitado por turistas, o que expressa um certo tipo de alienação cultural. Além
disso, a obra oferece à audiência um vibrante jogo de reflexos, a partir do
qual é possível ver cenas em que os personagens são vistos duplamente, de
frente e de costas, ou diante de si próprios, em uma bonita (e latente) relação
com a frase “eu tenho amigos para saber como eu sou.” São discretos, mas
pontuais os figurinos de Antônio Guedes, as participações da trilha sonora de
Rafael Rocha e o desenho de luz de Beto Bruel.
“Beije minha lápide”, como “Conselho
de classe” e como “Mamutes”, é uma peça política, mas não ideológica. Ao sair
do teatro, o espectador terá sido gentilmente levado ao questionamento sobre
diversos pontos, entre eles, a posição do estado em agir arbitrariamente sobre
aquilo que não conhece. Aplausos sonoros!
*
Ficha técnica
Texto:Jô Bilac
Direção: Bel Garcia
Elenco: Marco Nanini, Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings
Produzido por: Fernando Libonati
Idealização: Marco Nanini e Felipe Hirsch
Figurino: Antônio Guedes
Iluminação: Beto Bruel
Cenografia: Daniela Thomas
Concepção e direção de vídeo: Julio Parente e Raquel André
Videografismo: JúlioParente
Trilha sonora: Rafael Rocha
Design gráfico: Felipe Braga
Fotografia: Cabéra
Visagismo: Ricardo Moreno
Visagismo Marco Nanini: Graça Torres
Assistente de direção: Raquel André
Equipe de Produção
Coordenação e gestão de projetos: Carolina Tavares
Direção de produção: Leila Maria Moreno
Produção executiva: Monna Carneiro
Assistente de produção: Gutemberg Rocha e Glauco Lopes
Realização: Pequena Central
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