terça-feira, 7 de outubro de 2014

Beije minha lápide (RJ)


Paulo Verlings e Marco Nanini no cenário de Daniela Thomas
Foto: divulgação

Oscar Wilde, Marco Nanini e Jô Bilac: excelente teatro político contemporâneo


            Um dos melhores espetáculos produzidos em 2014, “Beije minha lápide” é o novo texto de Jô Bilac, dirigido por Bel Garcia e protagonizado por Marco Nanini. Finalizando temporada nos Correios, a peça vai seguir carreira no Teatro Dulcina, na Cinelândia, ainda no Rio de Janeiro. No elenco, Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings integram o elenco, todo ele de já esperados excelentes trabalhos de interpretação. O cenário de Daniela Thomas é também um dos pontos altos do espetáculo, cuja dramaturgia se mistura com excertos de Oscar Wilde. Pelos objetivos nobres, pelos desafios vencidos e pela excelência do resultado, eis aqui uma peça que exibe mais uma vez o já admirado talento de seus realizadores.

            A história da peça parte de um fato real. Há uma tradição entre os admiradores do escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) que é a de beijar seu túmulo, deixando impressa uma marca de batom. Levando em conta que sua tumba é, desde 1914, uma obra de arte de Jacob Espstein, a administração do cemitério Père Lachaise, em Paris, achou por bem proteger a lápide com uma barra de vidro em 2011. Na dramaturgia, Sebastian (Marco Nanini) é um escritor contemporâneo famoso que, em um momento de descontrole (?), arrancou a proteção imposta e, assim, pode beijar a lápide de Wilde, mantendo firme a tradição. Na primeira cena, Sebastian está preso e sua advogada Roberta (Carolina Pismel) tenta estabelecer um diálogo com o cliente, buscando bases para a construção da defesa. Na sequência, o espectador conhecerá também Tommy (Paulo Verlings), o carcereiro; e Ingrid, a guia que conduz os visitantes nos passeios ao cemitério de Paris.

            O primeiro ponto relevante do texto de Jô Bilac está na requisição de um espectador ativo durante o processo de fruição da peça. O modo como as informações estão dispostas requer reflexão constante. Dentre as forças que estruturam a história de “Beije minha lápide”, há o debate entre o que é legal juridicamente versus a fidelidade aos princípios. Já na abertura da peça, assim, está a oposição entre o espírito irrequieto de Sebastian e a visão metódica de Roberta. Em liberdade, a advogada goza de certo prestígio na profissão e é aparentemente feliz em seu noivado com um médico otorrinolaringologista. O movimento de discussão sobre qual tipo de proteção real a tampa de vidro oferece vai, dessa forma, se espalhando, durante a narrativa, nas reflexões sobre outros elementos: o que está por trás de Roberta? De Ingrid? De Tommy?

            Outra questão interessante ainda nesse quesito é o ineditismo da obra. Ao longo do texto, várias frases de Wilde são citadas, principalmente aquelas ditas pelo personagem de Nanini, de maneira que é notório que estamos diante de uma obra com clara referência ao irlandês. No entanto, nem “Beije minha lápide” é uma história escrita por Wilde, nem o escritor aparece em cena personificado. Uma carta que Sebastian escreve na prisão para sua filha, em uma referência a “De profundis”, livro escrito por Wilde na cadeia, também ganhará importância ao longo da narrativa.

            A encenação de Bel Garcia, co-diretora de “Conselho de classe”, outro espetáculo premiado de Jô Bilac, oferece mais uma questão bastante interessante. Ao situar Sebastian dentro de uma caixa de vidro, a peça se abre como uma metáfora riquíssima. A prisão do escritor protagonista tem visível relação com a tampa de vidro do túmulo de Wilde que, por sua vez, tem proximidade com a condenação do irlandês. Por outro lado, outro mérito da direção, a interpretação de Nanini para o personagem Sebastian expressa uma segurança que tem nítida oposição com a dos demais, tensas quanto ao alcance de seus objetivos.

            Em trabalhos menores, Júlia Marini (Ingrid) e Paulo Verlings (Tommy) expressam bastante sutilmente algumas variações que dão o tom de seus personagens. Considerando os muitos níveis semânticos dessa narrativa, o efeito é revelador. Em uma interpretação confortável, Carolina Pismel evidencia semelhança desta com outras personagens suas: as falas cortantes, o tom pontual, os movimentos retos, tudo isso apropriado para sua advogada Roberta. Marco Nanini, com movimentos reduzidos e entonações próximas do real além da narrativa, dá a ver um Sebastian carismático apesar de sua ironia, afetação e rabugice.

            Aparentemente simples, o cenário de Daniela Thomas, com vídeos de Julio Parente e de Raquel André, é uma estrutura bastante complexa tanto tecnicamente como da ordem da construção do sentido. No vidro, são projetadas imagens florais que expressam o bucolismo de um cemitério visitado por turistas, o que expressa um certo tipo de alienação cultural. Além disso, a obra oferece à audiência um vibrante jogo de reflexos, a partir do qual é possível ver cenas em que os personagens são vistos duplamente, de frente e de costas, ou diante de si próprios, em uma bonita (e latente) relação com a frase “eu tenho amigos para saber como eu sou.” São discretos, mas pontuais os figurinos de Antônio Guedes, as participações da trilha sonora de Rafael Rocha e o desenho de luz de Beto Bruel.

            “Beije minha lápide”, como “Conselho de classe” e como “Mamutes”, é uma peça política, mas não ideológica. Ao sair do teatro, o espectador terá sido gentilmente levado ao questionamento sobre diversos pontos, entre eles, a posição do estado em agir arbitrariamente sobre aquilo que não conhece. Aplausos sonoros!

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Ficha técnica
Texto:Jô Bilac 
Direção: Bel Garcia 
Elenco: Marco Nanini, Carolina Pismel, Júlia Marini e Paulo Verlings 
Produzido por: Fernando Libonati 
Idealização: Marco Nanini e Felipe Hirsch 
Figurino: Antônio Guedes 
Iluminação: Beto Bruel 
Cenografia: Daniela Thomas 
Concepção e direção de vídeo: Julio Parente e Raquel André 
Videografismo: JúlioParente 
Trilha sonora: Rafael Rocha 
Design gráfico: Felipe Braga 
Fotografia: Cabéra 
Visagismo: Ricardo Moreno 
Visagismo Marco Nanini: Graça Torres 
Assistente de direção: Raquel André 
Equipe de Produção 
Coordenação e gestão de projetos: Carolina Tavares 
Direção de produção: Leila Maria Moreno 
Produção executiva: Monna Carneiro 
Assistente de produção: Gutemberg Rocha e Glauco Lopes 
Realização: Pequena Central  

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