Botton e sua cabeça de burro (Bob Turton) e o elenco em cena |
A primeira vez do The Actor`s Gang no Brasil
“A midsummer night’s dream” (“Sonho de uma noite de verão”), do grupo americano The Actor’s Gang encerrou a 21a edição festival Porto Alegre em Cena, um dos mais importantes festivais internacionais de teatro do Brasil. Dirigido por Tim Robbins, o espetáculo integra a programação dos 450 anos do nascimento do dramaturgo inglês William Shakespeare. A excelência da produção embelezou a primeira visita desse que é um dos grupos mais respeitados dos Estados Unidos, encantando e divertindo o público que lotou o Theatro São Pedro, na capital gaúcha, nos últimos dias do setembro.
Escrito provavelmente em 1594, “Sonho de uma noite de verão” é uma comédia, mas esse termo precisa de atenção. No período elisabetano, comédia não era, como hoje, aquela história que faz rir, mas delimitava um tipo de narrativa que não era nem tragédia, nem auto religioso ou hagiografia (vida dos santos). Trata-se de uma justaposição de fatos com algum contorno narrativo e que, mesmo divertindo, preserva uma certa moral. Dividido essencialmente em duas partes distintas, o texto não é um dos melhores do bardo, mas, sem dúvida, um exemplar de sua genialidade enquanto contador de histórias para o palco.
Na primeira parte, temos a história de Hérmia, filha de Egeu, que ama Lisandro e por ele é amada. Decidido a fazer sua filha se casar com Demétrio, Egeu leva sua filha para o Príncipe Teseu, que ainda comemora o seu recente casamento com a Princesa Hipólita. Se Hérmia não cumprir a vontade do pai, deverá enterrar-se em um convento. O príncipe dá, então, um dia para os jovens reflitirem. Nessa noite, Lisandro e Hérmia resolvem fugir, atravessando a floresta de Atenas, para longe das leis vigentes. O problema é que Hérmia conta o plano de fuga para sua melhor amiga Helena, que revela o segredo ao seu amado Demétrio, esse o admirador de Hérmia. Demétrio vai atrás de Hérmia e é seguido por Helena. Na floresta, seres mágicos povoam a noite. O Rei Oberon e a Rainha Titânia brigam pela posse de um pajem. Para vingar-se, Oberon encanta Titânia, derramando sobre seus olhos, enquanto ela dorme, um extrato da flor do Amor Perfeito, fazendo com que ela se apaixone perdidamente por um ator errante de um grupo que almeja tomar parte na festa do casamento do Príncipe Teseu. Comovido com Helena, que é desprezada por Demétrio, Oberon manda seu elfo Puck enfeitiçar também Demétrio, mas Puck primeiro o confunde com Lisandro e só então acerta. O resultado é que, no meio da noite, Helena se vê idolatrada por Demétrio e por Lisandro enquanto Hérmia é odiada por ambos. Essa parte da história termina ao amanhecer quando Oberon desfaz o encantamento de Lisandro e o de Titânia, com quem se reconcilia. Os jovens são encontrados na floresta por Teseu e por Egeu e Demétrio retira o pedido de casamento à Hérmia, terminando todos “felizes para sempre”.
Uma peça dentro da peça, a segunda parte da história envolve o teatro apresentado pelo grupo de atores no casamento de Teseu com Hipólita. Dirigidos pelo carpinteiro Peter Quince, a trupe apresenta o triste episódio de Píramo (interpretado pelo personagem Nick Botton) e de Tisbe (pelo personagem Francis Flute) tirados de “Metaforses”, do poeta romano Ovídio. Proibidos de se casarem por causa da rivalidade dos seus pais (considerar aqui a história de Hérmia e de Lisandro, mas também a de “Romeu e Julieta”), eles trocam juras de amor através do buraco de um muro que divide as duas casas. Em uma noite de luar, resolvem se encontrar no túmulo de Nino. Tendo chegado antes, Tisbe vê um leão se aproximar com a boca suja de sangue e se esconde, deixando cair seu véu. Ao ver o tecido sujo e as pegadas do leão, Píramo pensa que sua amada foi assassinada e se mata. Ao ver seu amor morto, Tisbe mata-se também. Os monólogos da Lua (Robin Starveling), do Leão (Snug), do Muro (Tom Snout), de Píramo e de Tisbe, exagerando na poética, são engraçadíssimos principalmente porque ditos por péssimos atores (os personagens-atores) que divertem os personagens da primeira história, esses convidados da festa de casamento de Teseu e de Hipólita. “Sonho de uma noite de verão” termina com a festa dos elfos da floresta, entre eles, Puck, o “bom robin”.
“A midsummer night’s dream” é um ótimo espetáculo por muitos motivos. O primeiro deles é porque Tim Robbins, assistido por Cynthia Ettinger, conseguiu articular bem as duas histórias, sem economizar uma das duas como é comum, mas mantendo viva a atenção do público. Dois são os combustíveis dessa boa articulação: de um lado, temos uma encenação que se renova em cada quadro, oferecendo elementos novos que preenchem o palco vazio e a visão do público. Os cenários compostos essencialmente de elementos que os atores seguram com a próprias mãos se movimentam naturalmente ao sabor das cenas, ocupando vários níveis belissimamente. Os figurinos (Olivia Courtin, Mary Eileen O’Donnell e o elenco), em sua simplicidade, entram e saem dos espaços de luz como os seres da floresta que a história representa. O desenho de luz de Bosco Flanagan colore sem tirar os vestígios da noite e ilumina a encenação da peça dentro da peça sem ser incoerente com a boa hierarquia de momentos de Robbins. A direção musical de Dave Robbins pontua o ritmo dos passos ágeis dos intérpretes que dão a ver os quadros de forma amplamente coberta de detalhes, mas com precioso rigor. Por outro lado, o elenco é composto por excelentes trabalhos de interpretação.
O jogo de interpretações, que permite que um mesmo ator interprete mais de um personagem, deixa ver um afinado baile. As trocas de roupa são velozes, o entra e sai é frequente, os giros garantem o ritmo sempre ascendente. Sabra Williams (que também faz Puck e Titânia) e Pierre Adeli (que também faz Oberon) disputam um ótimo jogo de poder, dando nova vida para o casal geralmente apagado de personagens Hipólita e Teseu no texto original. Algo positivamente parecido acontece aqui com os personagens secundários que acompanham Titânia em relação a Botton-com-cabeça-de-burro, que a Rainha enfeitiçada idolatra: é visível uma “queda de braço entre eles”. Mary Eilleen O’Donnell apresenta um carismático Peter Quince. Lee Margaret Hanson (Hérmia), Hannah Chodos (Helena), Will Thomas McFadden (Lisandro) e Adam J. Jefferis (Demétrio) interpretam os jovens apaixonados com agilidade que movimenta a narrativa para além de um romantismo equivocado felizmente. No entanto, Bob Turton, como Botton, se sobressai entre todos os excelentes resultados, protagonizando um dos melhores momentos de toda a encenação de 160minutos. Seu monólogo texto-gestual expõe um trabalho de atuação magnífico e merecedor dos muitos aplausos recebidos.
Na versão do grupo californiano The Actor`s Gang, “Sonho de uma noite de verão” acontece em uma época não definida e em um lugar que, embora cite Atenas, não se resolve exatamente. Os elementos cômicos, dispostos a enfatizar o que há de pior no comportamento humano, não escondem a violência do pai sobre a filha, do marido sobre a mulher, da amiga pela outra amiga, dos financiadores pelos grupos de teatro e os pobres atores mambembes, dos reis e de seus vassalos. Ainda que tudo seja contato de um jeito leve e engraçado, lembremos que Demétrio só fica com Helena porque ainda está enfeitiçado, o que claramente nos permite pensar que o feitiço proporcionado pelo teatro nunca acaba. Nesse caso, ainda bem!
Ficha técnica:
Texto: William Shakespeare
Direção:Tim Robbins
Assistente de direção: Cynthia Ettinger
Direção musi cal: Dave Robbins
Iluminação: Bosco Flanagan
Máscaras: Erhard Steifel
Figurinos: Olivia Courtin, Mary Eileen O'Donnell e o elenco
Elenco:
Adam Ferguson
Adam J. Jefferis
Cihan Sahin
Hannah Chodos
Lee Margaret Hanson
Mary Eileen O’Donnell
Molly O’Neill
Monica Quinn
Pedro Shanahan
Bob Turton,
Pierre Adeli
Sabra Williams
Jillian Yim
William Thomas McFadden
Músicos: Dave Robbins e Mikala Schmitz
Produção executiva: Simon Hanna
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