sábado, 3 de novembro de 2012

Noites Brancas (RJ)

Foto: divulgação

Narração e narrativa em um equilíbrio interessante

Uma das questões mais interessantes do espetáculo “Noites Brancas” é o fato de que, em sua encenação, o ato da narração tem tanta importância quanto a narrativa. Interessante não significa nem realmente bom, nem realmente ruim, mas peculiar. Pode-se dizer com segurança que, fosse um Dostoiévski comum, isto é, realista psicológico, como “Irmãos Karamazov”, “Crime e Castigo” ou como “O Idiota”, o resultado sairia melhor porque, nesses romances, a análise do personagem é mais interessante do que o que ele faz. Dirigido por Thierry Trémouroux, diretor belga radicado no Brasil, e com atores, não atores e músicos no elenco, o espetáculo produz imagens ricas em beleza, cheias de sonoridade e com ótimas interpretações. O destaque está para a atriz francesa Hélène De Reymaeker, para o ator Rafael Veríssimo, para o cenário e figurino de Desirée Bastos e para a direção musical de Fabiano Krieger e de Lucas Marcier. 

“Noites Brancas” é um Dostoiévski inicial, um Dostoiévski romântico, assim como Machado de Assis em “Ressurreição” e em “A Mão e Luva”, ambos muito distantes de “Dom Casmurro”. É a história de amor de um rapaz que encontra, numa noite branca (um fenômeno em que o céu permanece claro mesmo após o sol se pôr porque ele permanece pouco abaixo da linha horizonte), uma moça triste nas margens do rio Niéva. Ele conta a história dele pra ela, ela conta a história dela pra ele. Ele se apaixona perdidamente por ela e ela aceita ficar com ele. Então, o grande amor da vida dela, que, a princípio, não viria nunca, reaparece e o rapaz, que é quem conta a história 15 anos depois, fica sozinho. Ou seja, toda a história é vista a partir daquele que ficou sozinho. O leitor não tem o ponto de vista nem dela, nem do outro que chegou. E é esse olhar único que a encenação de Thierry Trémouroux resgata ou quer resgatar. A pergunta é: o quanto de nós empregamos na história ao contá-la? Assim, o jogo no palco é de contadores vários para uma história única. Os personagens se sucedem em vários idiomas, em várias marcações, em várias traduções. E é bem feito na medida em que as cenas se alternam, mas permanecem como resultado imagens poéticas cheias de fluidez sem menos profundidade. 

Raquel Karro e Thales Coutinho, mas sobretudo Hélène De Reymaeker e Rafael Veríssimo têm interpretações sensíveis, cheias de docilidade e de candura, trazendo à superfície toda uma carga emocional presente no texto e, então, no todo da encenação. A cena final, coroada com a frase que termina o romance, fica na retina positivamente junto de outras tantas que foram vistas no decorrer da narrativa. Talvez a curva dramática que retoma a história não fique tão clara, mas eis aí o limite bravamente cruzado que separa o que é teatro do que é literatura. No palco da Cia dos Atores, é o primeiro que se celebra. 

Desirée Bastos constrói um lugar nobre para a narrativa. Muitos papéis brancos juntos dentro de um quadrado semi-transparente são a neve e a desolação, a frieza não só da paisagem russa, mas da solidão seja onde for que ela estiver sendo sentida. Os detalhes dos belos figurinos, sobretudo dos ternos, mas também dos vestidos ampliam os níveis de percepção da obra positivamente. A iluminação de Renato Machado, mas ainda mais a direção musical de Fabiano Krieger e de Lucas Marcier constróem lugares, marcam o ritmo e enriquecem os quadros. A sonoridade da fala russa, dita por Nancy Gaissionok, traz uma musicalidade ímpar que reforça a importância da narração em relação à narrativa. 

“Noites Brancas” é fruto de um processo composto por várias etapas, pontuado por cinco residências voltadas para a tradução do texto literário: três delas na Cia dos Atores, uma no Atelier de Preparação de Atores em Angra dos Reis e uma no Centro de Reciclagem de Atores no Rio de Janeiro. Após uma temporada no Espaço Sesc de Copacabana, em que se apresentou o primeiro capítulo com o título "Primeira Noite: Não se apaixone por mim", agora, enfim, a versão final que estreou no Festival Tempo. Vida longa! 

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Ficha técnica:

Direção: Thierry Trémouroux
Em cena: Arley Veloso, Clarisse Zarvos, Hélène De Reymaeker, Nancy Gaissionok, Rafael Veríssimo, Raquel Karro, Thales Coutinho e Fabiano Krieger
Dramaturgia: Thierry Trémouroux
Consultoria de Dramaturgia: Luisa Buarque
Cenário e Figurino: Desirée Bastos
Assistente de Cenário e Figurino: Amanda Ramos
Iluminação: Renato Machado
Direção Musical: Fabiano Krieger e Lucar Marcier
Programação Visual: Bruno Perlatto, Thierry Trémouroux e Raquel Karro
Produção Executiva: Fernanda Avellar e Marina Gadelha

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