Quando a música não precisa de canções, um espetáculo impactante
Vivendo o momento é sempre mais difícil analisá-lo. Mais ainda é descrevê-lo. Ao reproduzi-lo, corre-se o risco de, ao fazê-lo, não fazê-lo, que é quando o teatro fica tão próximo da realidade além da narrativa que até parece não ser teatro. Ao embrenhar-se por sua conta e risco nesse desafio mais terrível, o grupo mineiro Espanca! acertou em potencializar (dar potência) ao que de simbólico há no real de forma que o teatro pudesse ser trampolim para a realidade reproduzida. Com isso, o real além da narrativa está nessa peça tão fortemente simbólico, e por isso vivo, que o espetáculo “Amores Surdos” parece “esfregar na cara” da plateia o seu próprio reflexo. Desde o monólogo “Estamira”, de Dani Barros, com direção de Beatriz Sayad, não se via algo tão impactante.
As marcas da contemporaneidade, que faz a produção verdadeiramente cheirar a Hoje, são possíveis de ser vistas 1) no texto; 2) na forma de dizer o texto; 3) no não-texto; 4) nos elementos visuais (paleta de cores e texturas), nos elementos sonoros (a trilha, o ritmo, o sapateado) e nos elementos proxêmicos (as relações de proximidades e de distâncias entre os atores em si e deles com o público). Para o leitor leigo, é preciso que ele saiba que essas são as estruturas que fundam o teatro desde a Grécia até o dia de hoje, embora, por muito tempo, pareceu ser apenas o texto o ponto importante. “Amores Surdos”, que estreou em 2006, diz muito quando não diz, mas diz mais ainda quando não ouve e quando vê.
No apartamento de cima, onde moram os vizinhos, briga-se muito. E quando os gritos lá estão muito altos, eles ligam música clássica a todo o volume a fim de disfarçar para o resto do condomínio. Chega um anúncio do edifício dizendo que, a partir de agora, será permitido aos moradores criarem cães e chegam também várias ligações de um dos filhos que mora longe, onde cai a neve e o fuso horário é diferente do daqui. Ele sente saudades de sua família, quer saber se o seu quarto ainda está intacto, manda presentes, sente a falta de todo mundo. Um dos filhos sente falta de ar. O outro é sonâmbulo. O outro não consegue sair para trabalhar. A outra ouve músicas o dia inteiro. O pai parece estar no quarto, a mãe cuida de todo mundo, ocupada em educar, acolher, ensinar, levar adiante a rotina para a qual, talvez, fora criada. Então, em uma família bem penteada que não é nem preta, nem branca, mas cinza, vem a lama. Marrom, pastosa, suja.
Com texto de Grace Passô e com direção de Rita Clemente, “Amores Surdos” é a segunda produção do grupo. Nele, como já foi dito, do ritmo da respiração dos intérpretes às marcas de entradas e saídas de cada elemento, ou jogo estabelecido entre as partes, tudo é teatro medido, testado e brilhantemente aprovado. Não há nada a mais, nem a menos. Quando não sabemos o que faz um dos filhos (Sanuel/Marcelo Castro) do lado de fora, por que ele não consegue partir, por que ele não consegue voltar, para onde ele deveria ter ido, é aí que se encontram as funções que o espectador contemporâneo precisa executar num tipo de teatro que lhe diga algo mais que o apenas entretenha. Quando a mãe é gentil com o filho (Joaquim/Assis Benevenuto) enquanto dorme, mas dura com ele quando está acordado, eis aí, talvez, a metáfora para as relações virtuais, aquelas que se estabelecem sem ser atuais, ou apenas postas em uma zona confortável, mas com regras múltiplas (os rizomas de Deleuze e de Guattari). Quando todos sabem o que acontecem no andar de cima, mas não sabem o que há no quarto do filho que partiu para o exterior, ou esteve o pai da família nos últimos cinco anos, então, Passô se aproxima (e muito!) de Nick Silver e constrói um “Pterodáctilos” brasileiro, do interior da casa, há de surgir uma lama suja que limpará todo o mal. O “golpe de mestre” vem em seguida: a única forma de limpar o mal é mantê-lo como está.
“- Ninguém vai matá-lo. Tem coisas que não se matam. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Essa é a nossa realidade. Não se arranca a coluna por causa da dor nas costas. Este bicho vai continuar aqui, nessa casa, dentro de nós. Dentro de nós. Ninguém vai mata-lo. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas. Tem coisas que foram feitas para se viver com ela. Tem coisas que foram feitas para se viver com elas.”
Cada filho, Assis Benevenuto (Joaquim), Gustavo Bones (Pequeno), Marcelo Castro (Samuel) e Mariana Maioline (Graziele), oferece excelente interpretação, vista na forma como falam e como silenciam, como se mexem e como mostram sentir. Com mais possibilidades de aparecer, mas aproveitando todas elas e criando muitas outras, Grace Passô é uma das atrizes cujo trabalho fica na retina para muito além do fim do espetáculo. Com viva inteligência em cena, o foco é dela e usado com maestria quando está em cena, sem hierarquizar negativamente a atenção, mas centrar a narrativa nessa que é uma das figuras centrais da história: a mãe. Com decisiva concepção de cenário (Bruna Christófaro) e de figurino (Paolo Mandatti), a iluminação de Cristiano Araújo e de Edimar Pinto confere ao todo a inclusão da realidade alheia e, ao mesmo tempo, a certeza de que estamos vendo uma história. Teatro e não teatro se confundem sob as lâmpadas abaixo do teto de PVC.
Daniel Mendonça assina a trilha sonora, mas é preciso dizer que “Amores Surdos” é um musical dos bons assim como “O Leopardo”, de Luccino Visconti. A música está presente em todo o espetáculo sem esperar pelas oportunidades óbvias da dança ou da canção como nas produções comuns, mas cavando lugar em circunstâncias inusitadas. O número de sapateado é brilhante em forma e em conteúdo, para citar apenas um momento. No silêncio de uma das cenas do fim, inclusive, vem o refrão:
“- Vocês, por favor, já podem ligar seus telefones. Alguém pode estar chamando por vocês e isso é muito importante.”
Recomendo com veemência, desejo Vida Longa e agradeço.
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FICHA TÉCNICA
Direção: Rita Clemente
Dramaturgia: Grace Passô
Atores: Assis Benevenuto (Joaquim), Grace Passô (Mãe), Gustavo Bones (Pequeno), Marcelo Castro (Samuel) e Mariana Maioline (Graziele).
Consultoria Dramatúrgica: Adélia Nicolete
Assistente de Direção: Mariana Maioline
Cenografia: Bruna Christófaro
Iluminação: Cristiano Araújo e Edimar Pinto
Figurino: Paolo Mandatti
Trilha Sonora: Daniel Mendonça
Direção Vocal: Babaya
Preparação Vocal: Mariana Brant e Camila Jorge
Preparação Corporal: Dudude Herrmann e Izabel Stewart
Coreografia/Professor de Sapateado: Eurico Justino
Técnico e Operador de Luz: Edimar Pinto
Cenotécnico: Joaquim Silva
Costureiras: Mércia Louzeiro e Ireni Barcelos
Produção: Aline Vila Real
Realização: Grupo Espanca!
COM CERTEZA ESSA FOI A MELHOR PEÇA QUE JÁ ASSISTI... TUDO EM PERFEITA SINTONIA, E AS "SURPRESAS" COMO O SAPATEADO E A LAMA NOS ENCANTAM! CARIOCAS, NÃO DEIXEM DE PRESTIGIAR ESSE ESPETÁCULO!
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