quarta-feira, 4 de abril de 2018

Hoje é dia de rock (PR)

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Foto: Vítor Dias
Elenco em cena


Excelente remontagem de clássico do teatro brasileiro

A belíssima montagem do Teatro de Comédia do Paraná para o célebre espetáculo “Hoje é dia de rock” merece ser aplaudida muitas vezes em todos os estados brasileiros. Eis um clássico revisitado de maneira sublime com direção de Gabriel Villela. A peça traz a doçura do saudosismo, a poética da dor e a afetividade da vida na qual se misturam realidade e fantasia. O elenco é formado por Arthur Faustino, Cesar Mathew, Evandro Santiago, Flávia Inirene, Helena Tezza, Kauê Persona, Luana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milléo Gualda, Paulo Marques e Pedro Inoue. Vale citar, nessa introdução, o nome de todos porque compõem um destacável conjunto de excelentes vozes, além de algumas excelentes interpretações. O texto de José Vicente, que marcou o teatro brasileiro no início dos anos 70, ressurge com força e coragem nessa produção que estreou em novembro de 2017 na capital paranaense, passou por São Paulo e esteve, durante o mês de março, no Teatro Ipanema no Rio de Janeiro. No último dia 28 de março, ela passou pelo 26º Festival de Curitiba. 

O barroco de Gabriel Villela e a saudade de Pedro Fogueteiro
Lançado em 12 de outubro de 1971, com direção de Rubens Corrêa (1931-1996), “Hoje é dia de rock” foi a peça mais importante escrita pelo José Vicente (1945-2007), pela qual ele ganhou o Prêmio Molière de Melhor Autor. A montagem, que ficou em cartaz até 1973, fez história no Teatro Ipanema, esse aberto há cinquenta anos (em 1968) por Corrêa e por Ivan de Albuquerque (1932-2001). 17 atores faziam parte do primeiro elenco, entre eles, a Ivone Hoffmann, que tinha feito o musical “Hair”, em 1969-1970, e ainda hoje está bem viva e atuante em nossos palcos. Houve várias outras remontagens. Entre elas, a de 1976, em Porto Alegre, dirigida por Dilmar Messias e com Lourdes Eloy entre outros atores no elenco; e a de 1980, dirigida por Carlos Wilson, com Andréa Beltrão, Ernesto Piccolo e Ticiana Studart entre outros. 

No texto, Pedro Fogueteiro é um compositor musical que trabalha em cima da criação de uma clave de cinco notas com a qual poderá escrever a canção que imagina. Ele é casado com Adélia e, com a esposa, tem cinco filhos: Quincas, Rosário, Davi, Valente e Isabel. A família mora no interior de Minas Gerais, em uma cidade chamada Ventania. Esse, na verdade, é o antigo nome de Alpinópolis, cidade natal de José Vicente, autor do texto. A situação de miséria em que a família se encontra faz com que ela precise emigrar. “Hoje é dia de rock” começa com a partida para Fronteira, cidade que fica na divisa com o Estado de São Paulo. 

Em Fronteira, os filhos de Pedro Fogueteiro se desenvolvem com destinos diversos. Um está casado com uma descendente de ciganos, outro parte para o seminário, outro se estabelece como artista e outro se casa com um morador local. A família tira sua renda de um bar, talvez a única diversão da pequena cidade. O mais importante dessa dramaturgia de José Vicente não são seus contornos narrativos, suas reviravoltas, seus conflitos, mas, sim, o extremo lirismo através do qual a saudade se torna tema. É uma peça sobre pertença, sendo lugar não exatamente um ponto no espaço, mas um registro abstrato, um laço que dá sentido à existência, colaborando com uma noção de origem. Ser de um determinado lugar não é propriamente ter nascido nesse lugar, mas conservar dentro de si, para sempre, uma memória afetiva de onde se partiu. 

O diretor mineiro Gabriel Villela é conhecido por sua estética barroca imposta por ele a todos os muitos espetáculos que dirige. Seja Shakespeare, seja Arrabal, seja Schiller, Beckett, Heiner Miller ou Nelson Rodrigues, tudo sai com a mesma cara: a face de Gabriel Villela. Se nem sempre o encontro é frutífero, aqui o foi felizmente. O colorido exuberante formado por elementos de múltiplas texturas, origens, formas, estampas nos figurinos; as canções religiosas e o repertório popular; os arranjos polifônicos; a quase inexistência de cenário e a maquiagem clownesca oferecem à paisagem um tom melancólico que é muito próprio da cultura ibérica que herdamos. Trata-se um Portugal que sonha com a volta de um Rei Dom Sebastião e de uma Espanha que se pune por ter abrigado em si, durante tanto tempo, judeus e muçulmanos. Enfim, de um povo que viveu a maior glória da Idade Moderna e que, chorando ao acreditar que perdeu tudo por castigo divino, sente saudades. Eis o barroco, está aí o receio que a família de Pedro Fogueteiro guarda dentro de si ao dar as costas para sua Ventania. 

A antiga montagem de Rubens Corrêa, com cenário de Klauss Vianna em galeria (um corredor ladeado pelo público sentado nos dois lados do palco), era completamente adversa. Naquela produção, o tom político-social tinha mais importância em um período duro da ditadura brasileira, em uma época de luta pelo respeito às mulheres, pelo fim da segregação racial, pelas liberdades sexuais e religiosas. Diferente do que se pode pensar,  porém, esse “Hoje é dia de rock” não se alienou, mas aparentemente assumiu um compromisso maior com a missão de iluminar certas partes da alma humana. Sai-se do teatro com o coração apertado, cheio de saudades da família, dos amigos e da infância, e disposto a se tornar uma pessoa que saiba valorizar melhor o momento presente antes que ele vire passado. Ninguém há de dizer que esse é um objetivo menos nobre.

Belíssima direção musical de Marco França
Todo o jogo cênico proposto pela direção de Gabriel Villela, assistido por Ivan Andrade, é, como sempre, um magnífico trabalho de construção de memória. É através dela que o espetáculo estabelece, com o público, seus próprios códigos e também os desenvolve. É sobre essa relação que o palco e a audiência conversam intimamente, combinando suas regras, estabelecendo suas quebras, restabelecendo seus acordos. A atenção se mantém presa, o ritmo bem ajustado ao tempo necessário para a construção da poética. Os elementos cenográficos e o figurino, ambos assinados também por Villela, casam o sagrado e o profano mais uma vez, oferecendo a essa produção uma certa pureza divina coexistente com a humanidade pecaminosa de personagens comuns. Isso tudo é muito enternecedor e vale citar a luz de Wagner Corrêa como outro elemento colaborativo nesse mérito. 
Os filhos

A direção musical, os arranjos e a preparação vocal são assinados por Marco França. O resultado reconstitui um certo “teatro ritualístico”, expressão que o crítico Yan Michalski usou para tratar do espetáculo de 1971. O analista correlacionava o espetáculo de Rubens Corrêa com a obra de Zé Celso Martinez Corrêa, alertando para a força da afetividade na versão carioca do gênero. É possível que positivamente o mesmo se possa dizer dessa montagem, com outras canções – tanto modernas quanto antigas -, mas igualmente cheias de carinho. Milton Nascimento brilha com seis canções em repertório que tem também Beatles, Elvis e Heitor Villa-Lobos, parte de acordo com o texto, parte inserções originais. 

Rodrigo Ferrarini e Rosana Stavis brilham
Quanto às atuações, vale destacar a qualidade da voz de todos os atores, mas, em especial a de Arthur Faustino (Seu Guilherme) e a de Rosana Stavis (Adélia). Ambos são responsáveis por momentos belíssimos do espetáculo. Matheus González (Davi), Cesar Mathew (Valente), Pedro Inoue (Quincas) merecem tanto destaque quanto Flávia Imirene (Neusinha), Helena Tezza (Isabel) e Nathan Gualda (Rosário). Eles aproveitam com técnica e sabedoria as melhores oportunidades disponíveis, acentuando suas participações sem desfocar o todo, mas engraçá-lo. Sem dúvida, Rodrigo Ferrarini (Pedro) e Rosana Stavis (Adélia) são os dois pontos mais altos do todo por apresentarem contribuições sensíveis e potentes, cheias de dor e de carisma que aumentam as qualidades dos personagens já anteriormente escritos. 

Um afago na alma
“Hoje é dia de rock” , como escreveu Gilberto Bartholo, é um “afago no coração”. Que muitas plateias recebam esse carinho tão bonito. 

*

Ficha técnica:
Texto | JOSÉ VICENTE
Direção, Cenografia e Figurinos | GABRIEL VILLELA

Elenco | Rosana Stavis, Arthur Faustino, Cesar Mathew, Evandro Santiago, Flávia Imirene, Helena Tezza, Kauê Persona, Luana Godin, Matheus Gonzáles, Nathan Milléo Gualda, Paulo Henrique dos Santos, Pedro Inoue, Rodrigo Ferrarini

Diretor Assistente | IVAN ANDRADE
Direção Musical, Arranjos e Preparação Vocal | MARCO FRANÇA
Aderecista e Assistente de Figurinos | JOSÉ ROSA
Iluminação | WAGNER CORRÊA
Fotografia Vitor Dias
Projeto Gráfico | JOSÉ VITOR CIT
Arranjo de Trenzinho Caipira/Desenredo | Ernani Maletta
Produção | Áldice Lopes, Daniel Militão e Diego Bertazzo

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