domingo, 25 de março de 2018

Grande sertão: veredas (SP)

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Foto: Guito Moreto


Caio Blat

Uma imperdível montagem histórica

O espetáculo “Grande sertão: veredas”, dirigido por Bia Lessa, é daquelas montagens que ficam na história do teatro do país, como “O Balcão”, de Victor Garcia; ou “Gota d`água”, de Gianni Rato. Quem assiste sabe disso, quem faz deve se orgulhar. Trata-se de uma excelente adaptação para teatro do livro homônimo do mineiro João Guimarães Rosa (1908-1967), a obra mais importante escrita em língua portuguesa desde “Os lusíadas” (1572), de Luís de Camões. (Quem não leu não pode dizer por aí que entende de alguma coisa.) No elenco, Caio Blat interpreta Riobaldo de maneira magistral e definitiva, marcando um lugar glorioso na história do teatro brasileiro. Ao seu lado, também se destacam os excelentes Luisa Arraes (Riobaldo jovem) e Leonardo Miggiorin (Zé Bebelo) com Luiza Lemmertz (Diadorim), Leon Góes (Medeiros Vaz) e grande ótimo elenco em seus encalços. Entre todos os destaques, precisa ser citada a trilha sonora de Egberto Gismonti, que colabora de maneira essencial para o todo. Depois de uma linda temporada em São Paulo, a produção cumpre concorrida estada no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro até o próximo dia 31 de março. 

A complexidade de uma humanidade ou a travessia de um sertão 
O primeiro aspecto muito relevante do espetáculo “Grande sertão: veredas” é que a sábia Bia Lessa entendeu que não poderia inventar a roda. Diferente do que muitos diretores fazem com obras clássicas, ela não dá sua opinião. Não que não a tenha (é óbvio que uma artista inteligente como ela pensa muito!), mas porque entende que trazer a opinião de Guimarães Rosa já é desafio pesado o suficiente para ainda querer mais. Com maestria, suas criações se focam nas contribuições do teatro para a literatura certa de que a literatura contribuiu muito para o teatro sobretudo no que diz respeito a esse caso em especial. Riobaldo é nosso Hamlet, nosso Dom Quixote, nosso Édipo, nosso enigma. 

Publicado em 1956, “Grande sertão: veredas” é a obra máxima em língua portuguesa já escrita desde “Os lusíadas”, de Luís de Camões, que foi lançada no final do século XVI. As duas inventaram um idioma, ambas fundaram uma sociedade. Em torno da volta de Vasco da Gama a Portugal, está toda a mítica do império português. No interior da mente de Riobaldo, está toda a complexidade do mundo moderno. O “grande sertão” é o homem. E os caminhos que um homem trilha no interior de si mesmo são suas veredas. 

A história pode ser dividida em quatro partes. Na primeira, há a juventude de Riobaldo desde momentos antes da morte da mãe até seus primeiros anos com seu padrinho Selorico Mendes, quando ele aprende a ler e a escrever. É na fazenda de São Gregório que ele conhece Joca Ramiro, um dos jagunços mais temidos do sertão de Minas Gerais, por cuja vida Riobaldo se encanta. Nessa fase, também está sua ida para a fazenda do rico Zé Bebelo, que sonha em ser deputado: um tipo de jagunçagem também, mas institucionalizada. Lá, Zé Bebelo é atacado pelo grupo de Hermógenes, uma subpartição do grupo de Joca Ramiro. Reinaldo, um jovem de olhos verdes que Riobaldo conheceu ainda criança, faz parte desse grupo. E, por causa dele, Riobaldo troca de lado. 

Na segunda fase, Riobaldo passa a ser chamado de Tatarana por sua boa mira. Liderados por Joca Ramiro, com o grupo de Hermógenes e de Ricardão, Tatarana e Reinaldo atacam Zé Bebelo, trazendo muitos conflitos à alma de Riobaldo que já não sabe mais qual é o lado certo e qual é o lado errado na guerra. Em meio à batalha, Reinaldo conta a Riobaldo que seu nome verdadeiro é Diadorim e autoriza o amigo para que, quando estiverem à sós, ele o chame desse modo. Diadorim faz Riobaldo prometer que não se envolverá com mulher alguma enquanto estiverem em guerra. Com muito receio, mas sentindo-se intimamente ligado ao amigo, Riobaldo faz o juramento. Preso, Zé Bebelo é julgado pelo grupo de Joca Ramiro. Muitos defendem a pena de morte, mas Tatarana argumenta que matar em batalha para defender-se da morte é uma coisa e matar ali, a sangue frio, é outra. Com isso, consegue que Zé Bebelo seja exilado para Goiás, não podendo mais entrar em Minas Gerais enquanto Joca Ramiro estiver vivo. 

A terceira fase começa quando se descobre que Hermógenes e Ricardão mataram Joca Ramiro pelas costas, uma traição brutal. Liderados por Medeiros Vaz, Riobaldo e Diadorim partem no grupo que pretende vigar a morte do líder já no sertão baiano. No meio do caminho, há o Liso do Sussuarão, um deserto terrível de onde nenhum homem jamais voltou com vida. Lá, Marcelino Pampa morre e há uma disputa para ver quem será o líder. Riobaldo é indicado, mas ele nega. Surge Zé Bebelo e propõe unir-se ao grupo vingador como líder e é aclamado como tal. Porém, revela-se fraco, dependendo exclusivamente da ajuda dos soldados do governo para vencer suas guerras entre e contra os jagunços. Quando Zé Bebelo some, Riobaldo é aclamado como líder, passando a ser chamado de Urutú-branco. Em uma encruzilhada, em Veredas Mortas, invoca o demônio várias vezes e carrega consigo a dúvida de se vendeu ou não sua alma ao diabo. 

Na última fase, Urutú-branco é o líder da jagunçada contra os “judas”. Munido de força inabalável, tenta pela segunda vez atravessar o Liso do Sussuarão, dessa vez, com sucesso, o que lhe faz acreditar que talvez esteja sido protegido pelo demônio. Na fazenda de Hermógenes, sequestram sua esposa, mas não encontram o traidor. Na batalha seguinte, Riobaldo mata Ricardão e segue, enfim, para o Paredão. Lá Riobaldo, Diadorim e Hermógenes vão travar o seu combate final. E o leitor conhecerá, de alguma forma, uma nova personagem: Maria Deodorina da Fé Bittancourt Marins. 

Essas quatro partes, diferente do modo como foram trazidas aqui, não estão cronologicamente dispostas. Através de uma narrativa em primeira pessoa, todas as lembranças vêm à boca de Riobaldo de um modo muito confuso, como acontece com qualquer um. E Guimarães Rosa preservou isso. Há dezenas de páginas sem parágrafo e frases que duram folhas. Ao longo de quase quinhentas laudas, surgem incontáveis neologismos de maneira que “Grande sertão: veredas” é um livro que precisa ser lido em voz alta para que os sons ajudem o leitor a compreendê-lo na falência das letras no papel. Tudo isso tem sentido: interessa à obra ser metáfora para a complexidade do mundo. 

Pelo menos, três grandes conflitos povoam a mente de Riobaldo: o moral, o religioso e o identitário. Em primeiro lugar, as noções de certo e errado nunca ficam exatamente claras para o personagem: ele se identifica com seus inimigos, se distancia dos seus amigos, não se sente realmente parte de nenhuma bandeira, mas pode se ver entre todas. Em segundo lugar, ele reconhece o poder das forças ocultas, mas não consegue dar-lhe um rosto. A existência do demônio é várias vezes questionada, embora pairem muitas dúvidas sobre o seu poder. Em Veredas Mortas, fica claro que o demônio, para Riobaldo, é útil, pois, com ele, sabe-se o que é justo e injusto, quem é bom e quem é mau, o que é bonito e o que é feio. Mas, para o protagonista, o problema da vida é justamente a dúvida, a falta de organização, a transformação, a travessia. Por fim, há ainda um debate interno que diz respeito à sua identidade. Sendo homem, como pode ele gostar de outro homem? 

O Brasil vive hoje um período em que massas clamam por um padrão moral inabalável capaz de trazer luz (como Lúcifer) sobre o que é bom e o que é mau, o que é certo e o que é errado. Isso resulta de um cansaço da convivência com o fluído, com o carnaval, com o sertão e com suas veredas. É nesse sentido - porque há que se reconhecer que é verdadeiramente no sertão onde há vida - que Riobaldo é essencial hoje em dia: um homem em travessia. 

Um espelho cheio de oposições 
Bia Lessa, para transpor “Grande sertão: veredas” ao teatro, escolheu o formato de palco em galeria: o público fica dos dois lados do espaço cênico, o palco no meio das duas plateias. Com isso, ela valoriza a dualidade presente em toda a obra: o conflito, o embate, a travessia. Essa concepção, assinada também por Camila Toledo com colaboração de Paulo Mendes da Rocha, privilegia a dúvida e faz dela o ponto chave para se adentrar no universo de Guimarães Rosa nesse livro. 

Com exceção de alguns bonecos de cobertor e pedaços de madeira, não há objetos em cena. Os figurinos de Sylvie Leblanc são pretos, uniformizando todos os personagens: membros de uma mesma humanidade em transformação apesar de terem nomes e personalidades distintas. Através disso, pode-se supor que Lessa entende que as pessoas da história são anônimos com nome: um povo esquecido do sertão, heróis sem caráter, nem história, nem medalhas. 

É desse material, "donada", que a história ganha corpo pela boca de Riobaldo. Tudo acontece em suas lembranças e lembranças não têm corpo, nem massa, mas são apenas energia em movimento atravessando o cérebro do narrador. São como o teatro, que existe enquanto acontece, mas depois é só imagens turvas na cabeça de quem dele se lembra. 

Através do belíssimo desenho de luz de Binho Schaefer e sobretudo da maravilha de música de Egberto Gismonti, o público é alçado para dentro da linguagem de Riobaldo: um falar pretensiosamente rebuscado a la Luís de Góngora (1561-1627), poeta culteranista espanhol que viveu na mesma época de Camões, Lope de Vega, Cervantes, de William Shakespeare, entre outros menos célebres. Em suas voz, o homem faz força para existir não apenas quando nasce, mas quando luta para legitimar no mundo sua existência. Tanto a luz quanto a música realçam sua narrativa, destacando o corpo, o movimento, as sombras. 

O ritmo do espetáculo “Grande sertão: veredas” é excelente porque a direção de Lessa, assistida por Bruno Siniscalchi, faz, de um lado, tudo acontecer no ato presente da encenação; e, de outro, se utiliza da reflexão do personagem-narrador como rápido respiro capaz de oxigenar o todo e manter-lhe a fluência. Em outras palavras, não há ações descritas, mas encenadas e não há reflexões desperdiçadas, mas integralmente relacionadas ao contexto narrativo. 

Dentre todos os méritos da encenação, valem destacar dois: o uso da som e a articulação entre as cenas. Quanto ao primeiro, a opção pelo palco em galeria levou a produção ao problema de espaço para a montagem. A rotunda do CCBB-Rio tem uma péssima acústica, mas o problema foi resolvido com o uso de fones de ouvido por meio dos quais o público ouve o que falam os atores. Os fones, no entanto, trouxeram inúmeras outras vantagens à fruição. Graças a eles, compreende-se tudo o que se é dito em cena com magnífica precisão. Além disso, por causa deles, pôde os atores optar por alternar momentos de maior grandeza no tom de suas falas e momentos em que a introspecção pode acontecer de modo mais realista. Assim, o ambiente sonoro de “Grande sertão: veredas” é um ponto relevante em seu sucesso porque concedeu à viabilização a possibilidade de explorar as sutilezas da mesma forma que as grandezas da obra. O momento em que os fones são desligados para realçar o ataque ao bando inimigo é um ótimo exemplo para argumentar sobre como a opção auxilia no ritmo do espetáculo positivamente. 

Por fim, a presença dos pássaros na encenação é outro ponto marcante. Sejam corvos, sejam urubus, sejam colibris, eles sustentam o mistério da obra, estando presentes vindos do céu, mas próximos dos homens, algumas vezes, desejando suas carnes apodrecidas. Em vários momentos, Lessa desfaz as presenças dos personagens, fazendo com que os atores abandonem as cenas por meio da representação de pássaros. Esses entrechos marcam um modo muito peculiar de articular os quadros na estrutura da peça. Não são finalizações rígidas, mas deslizantes, que colaboram para que a existência da narrativa no espaço-tempo seja integrada desde seu interior. 

Como acontece na leitura do livro, “Grande sertão: veredas” não pega fácil. É um sertão, não é um resort à beira mar afinal de contas. A obra exige esforço, a complexidade requer traquejo. Todo esse início difícil, no entanto, dá vida para a delícia da experiência do meio para o fim. De um lado da plateia, é plenamente possível identificar o outro lado completamente tocado pelo quadro que se interpõe entre o público. Riobaldo surge e reina como um espelho que devolve ao homem sua imagem cheia de oposições. 

Blat torna um clássico da literatura em um clássico do teatro 
Luisa Arraes e Leonardo Miggiorin
Ao analisar os trabalhos de interpretação, há que se começar por reconhecer outro aspecto bastante meritoso da produção: o casting. Quaisquer adaptações de “Grande sertão: veredas” para o campo do pictórico, do imagético, do audiovisual ou do teatral esbarra em um problema: como representar Diadorim sem revelar seu segredo? A montagem de Bia Lessa resolveu isso brilhantemente. Há três atrizes mulheres (cis) no elenco: Clara Lessa, Luisa Arraes e Luiza Lemmertz. Com isso, a produção informa ao público que faz parte de seu idioma se utilizar de intérpretes para os personagens sem se importar com o gênero. Arraes interpreta Riobaldo mais jovem, Lemmertz é Joca Ramiro além de Diadorim e Clara é vários jagunços além de Diadorim mais jovem. Esse jogo que a contemporaneidade permitiu ao teatro jogar (não comparar com o modo como teatro elisabetano lidava com essa questão) é um grande ganho para essa proposta e Bia Lessa soube aproveitar-se disso muito bem. 

Há aqui um belíssimo trabalho do conjunto de elenco. Em papeis menores, Balbino de Paula, Daniel Passi, Elias de Castro, Lucas Oranmian e Clarra Lessa contribuem com ótimas participações, oferecendo o que é possível dentro do espaço que eles têm. Verifica-se com júbilo grande força, intenções precisas, gestos bastante bem marcados em cada detalhe no todo de suas presenças. 

Leon Góes (Medeiros Vaz) e Luiza Lemmeterz (Diadorim) dão vida a figuras fortes, dando ver suas expressões quase sem detalhes, mas úteis ao que é necessário positivamente. Mais e melhor do que isso fazem Leonardo Miggiorin (Zé Bebelo) e Luisa Arraes (Ribaldo jovem). Nos dois, vê-se, para além do bom óbvio, uma sede pela minúcia, pelo ardiloso, pelo escondido de cada palavra. Seus corpos não se comportam ao texto, mas acrescentam algo a ele e às vezes flertam com o risco de modificá-lo. Isso dá vida aos seus personagens de modo brilhante. 

Todos os elogios são poucos a Caio Blat por esse trabalho. De modo excelente, ele se apropriou da voz de Riobaldo, um personagem literário, dando-lhe corpo através da corporalidade das palavras. Blat diz o texto como se o texto fosse dele, o que seria banal se não se estivesse falando de “Grande sertão: veredas”. As entonações, as respirações, as curvas, as perdas, as valorizações, os silêncios de cada fala são méritos do ator na atribuição ao personagem que se devem aplaudir sonoramente. 

Ainda sobre Blat, vale ressaltar o modo como o intérprete interage nas cenas. Suas presenças são sorrateiras – ele está ali, mas não está – como as de alguém que, do presente, visita o passado e se reencontra. Vértice sobre o qual toda a peça gira, seu personagem Riobaldo segura toda a responsabilidade pelo clássico da literatura e torna também o espetáculo um clássico do teatro por sua brava atuação. 

Vida longa! 
“Grande sertão: veredas” é um marco teatral em nosso tempo a que não se pode deixar de assistir. Que a produção tenha vida longa nos palcos desse grande, enorme e sedento Brasil. Evoé! 

*

FICHA TÉCNICA
Concepção, Direção Geral, Adaptação e Desenho de Luz – Bia Lessa

Elenco – Balbino de Paula, Caio Blat, Daniel Passi, Elias de Castro, Leon Góes, Leonardo Miggiorin, Lucas Oranmian, Luisa Arraes, Luiza Lemmertz, Clara Lessa.

Concepção Espacial – Camila Toledo, com colaboração de Paulo Mendes da Rocha
Música – Egberto Gismonti
Colaboração – Dany Roland
Desenho de Som – Fernando Henna e Daniel Turini
Adereços – Fernando Mello Da Costa
Figurino – Sylvie Leblanc
Desenho de Luz – Binho Schaefer
Projeto de Audio – Marcio Pilot
Diretor Assistente: Bruno Siniscalchi
Assistente de Direção: Amália Lima
Direção Executiva: Maria Duarte
Produtor Executivo: Arlindo Hartz
Colaboração – Flora Sussekind, Marília Rothier, Silviano Santiago, Ana Luiza Martins Costa, Roberto Machado
Idealização e Realização: 2+3 Produções Artísticas Ltda
Patrocínio: Banco do Brasil
Apoio: Globosat e Instituto-E | Om Art

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