sábado, 14 de abril de 2018

Nascituros (RJ)

www.facebook.com/criticateatral
www.acriticatral.com
Siga: @criticateatral
Foto: divulgação

Bruno Marques e John Marcatto


Boas intenções em uma peça ruim

“Nascituros” é a mais nova montagem do jovem Tríptico Coletivo. O espetáculo ganhou notoriedade quando teve sua estreia, no Castelinho do Flamengo em outubro do ano passado, adiada por uma pouco esclarecida “pane elétrica”. Na ocasião, o Brasil discutia sobre arte erótica nos museus. Desde o fim de março, a produção está em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, onde ficará disponível ao público até o próximo dia 6 de maio. Infelizmente, porém, ainda que tenha boas intenções, é difícil encontrar, em sua estrutura, muitos méritos estéticos. Tanto o texto, como a direção e sobretudo as atuações têm vários problemas que merecem a atenção nessa análise. Além de Marcatto, também estão no elenco Bruno Marques, Mariana Bridi e Marilha Galla. 

Uma dramaturgia muito confusa 
Ficará difícil explorar a dramaturgia de “Nascituros” sem revelar da peça alguns segredos. É bom parar aqui a leitura dessa análise se a montagem ainda não foi vista ou se as surpresas são consideradas relevantes. Vale dizer, de início, que o primeiro problema do conjunto é que o texto de John Marcatto e a encenação de Victor Fontoura aparentemente partem da pretensão de abordar muitas questões, mas infelizmente não chegam a aprofundar qualquer uma delas. Durante boa parte da sessão, o público fica perdido, tentando reconhecer os argumentos do debate ou ao menos identificar os pontos mais sólidos da narrativa sem sucesso. No último terço, enfim, é possível que as coisas comecem a ficar mais claras, mas o que sobra parece destruir o que de melhor havia sido encontrado anteriormente. Antes de se tratar propriamente desses problemas, note-se que texto e encenação, aqui, serão observados conjuntamente. Da plateia, a crítica não consegue exatamente saber, nesse caso, o que é de um e o que é de outro. 

A peça, cujo título é sinônimo de “feto” e significa “ser humano que está para nascer”, começa com um monólogo sobre trauma. Em seguida, dois atores (homens cis) surgem em cena, em um diálogo truncado – muito pouco realista pelo excesso de palavras difíceis e de um discurso límpido -, discutindo uma relação. Um se chama Cris (Bruno Marques) e o outro se chama Francis (John Marcatto). Eles tiveram uma relação muitos anos antes, o primeiro partiu para várias viagens pela Europa, o segundo ficou e escreveu uma peça de teatro em que o ex-namorado é um dos personagens. 

A cena dá lugar a uma outra com um diálogo parecido, mas que é defendido por duas atrizes (mulheres cis). Quando lá pelas tantas, elas também se chamam de Francis (Marilha Galla) e de Cris (Mariana Bridi), fica claro que, possivelmente, tem-se apenas uma história cuja interpretação é compartilhada por atores de quaisquer gêneros. (Os nomes Cris e Francis, aliás, são palavras cujos gêneros não são revelados.) Nesse momento, em termos de análise de fruição, passam a duelar, de um lado, a narrativa e, de outro, a forma como ela ganha corpo. Ou seja, o teatro (a história de Cris e de Francis) e o metateatro (quem interpreta esses personagens, quem escreve a história que eles estão vivendo e com quais intenções e consequências). 

[Duelos como esse são muito interessantes dentro dos estudos de teatro contemporâneo. O problema desse caso em particular é que, nesse início de espetáculo, não está clara qual é realmente a grande questão de “Nascituro”: um feto, um trauma, questões de relacionamento amoroso, problemas relativos a preconceito de orientação sexual (são dois homens ou duas mulheres), etc. Com essas dúvidas na cabeça, avança-se para a segunda parte do espetáculo.] 

Na segunda parte de “Nascituros”, há uma revelação. No passado, quando Cris e Francis eram crianças e estavam descobrindo juntos a sexualidade, Cris foi assediado pelo pai de Francis. Mais do que isso, houve a manutenção de um relacionamento pedófilo que permaneceu às escondidas. Durante um certo tempo, Cris se relacionou sexualmente tanto com Francis quanto com seu pai. A história, então, vem à tona. Francis enfrenta o pai em defesa do namorado, mas Cris surpreendentemente defende seu agressor. Cris é expulso de casa e, ao questionar o namorado sobre seu comportamento, ouve dele que preferia o sexo com o pai ao com o filho. E obviamente o namoro termina. 

Dominando os códigos do teatro contemporâneo, não é tão difícil identificar o jogo proposto pela dramaturgia e pela encenação. Mesmo sem trocas de figurino e sem cenário, entende-se que os quatro atores se revezam na viabilização de todos os personagens envolvidos. A percepção, porém, nesse espetáculo, nunca é tranquila, a fruição é muito racional, pois “Nascituros” exige muito e não devolve em igual medida. Suspeita-se de que o trauma anunciado na abertura seja o do assédio sexual que Cris sofreu enquanto vítima do pai de seu amigo. Essa teoria, porém, não é sólida diante da defesa que o agredido empreende em relação ao seu agressor. Fica a pergunta: o trauma diz respeito ao drama de Francis ao descobrir-se filho de um pedófilo e ainda por cima preterido em favor dele? Ou à pedofilia? Os dois traumas são equiparáveis na opinião da de “Nascituros”? 

Na terceira parte da dramaturgia, ganha notoriedade a aventura de Cris como dramaturgo de sua própria história. Dez anos depois do fim do seu namoro, ele é dignosticado como um portador de um transtorno dissociativo. E escrever uma peça com seus dramas é uma recomendação médica em favor de sua cura (?). Francis é contra, não aceita que só um ponto de vista dos fatos se torne público. O diálogo entre eles acontece próximo a uma praça em que um casal homossexual está namorando. Em meio à guerra entre os dois pela posse da verdade, esse casal – que só os personagens veem – é agredido supostamente por homofobia. 

No trecho final, o público de “Nascituros” descobre que toda a narrativa corre o sério risco de ser só uma alucinação de alguém hospitalizado: Francis. Sendo assim, portanto, tudo poderia ter sido real ou não. E, nesse sentido, faleceriam as esperanças de algum prêmio pelo sacrifício de ter tentado entender a peça ao longo de noventa minutos de apresentação. 

Muitos problemas nas interpretações 
Para além da dramaturgia, a montagem tem outros problemas. O grupo formado por trauma, homofobia, pedofilia, conflitos entre pais e filhos, conflitos entre namorados e direitos de narrativa já é tenso, mas isso tudo ainda se inviabiliza por outras explorações. Lá pelas tantas, há a apresentação de um programa sensacionalista em cena, talvez criticando a banalidade da internet. Há também uma peça sobre vacas e bois. E tudo isso surge através de quatro atores essencialmente vestindo preto, em palco liso, dividindo-se sem partitura entre todos os personagens. 

O jogo proposto pela direção de Victor Fontoura é tão exigente quanto o de um adolescente que quer o mundo sem saber exatamente o que fará nele. Ao mesmo tempo que quer ser compreendida, “Nascituros” mantém sua fruição dentro de uma racionalidade pesada através somente da qual poderá ser ouvida. Com isso, a peça impede que a experiência entre no campo do sensorial e do saboroso infelizmente. 

As quatro atuações são ruins. O texto é duro de dizer para John Marcatto, Mariana Bridi e para Marilha Gala, esses visivelmente se esforçando em oferecer às palavras algumas marcas de realidade. Com péssima dicção, Bruno Marques nem esse esforço consegue oferecer. Bridi e Galla, explorando ao exagero o histrionismo, fazem uso de gritos, gestos largos e de tom grandiloquente em momentos descabidos talvez no interesse de dar movimento e sal para o conjunto. Marques descansa na figura de jovem alto, loiro e convencionalmente bonito e consolida nisso seus méritos inexistentes. Marcatto, que escreveu o texto, tira proveito do personagem central, investindo nas dores do trauma que seu personagem viveu com alguns bons momentos. 

A iluminação de Poliana Pinheiro deixa os atores no escuro em vários momentos desnecessária e negtivamente. Sátiro Nunes assina um cenário que inexiste. O figurino de Cristina França tem alguma qualidade dentro do que apresenta, mas crê-se que sofreu pela concepção vinda da direção que não lhe deu melhores chances. A sonoplastia de Marcatto e de Fontoura ajudam a apresentar a peça como uma narrativa jovem, pós-romântica e obscura, mas melhor ainda carismática, o que é ótimo.

As boas intenções 
Não é nada divertido produzir uma crítica tão negativa quanto essa a um grupo jovem que começa a sua trajetória profissional. Essa, porém, é uma carreira séria, que exige não apenas o calor das boas intenções, mas também a frieza da reflexão sobre como organizar a criação. “Nascituros”, como já se disse, se perde no aparente afã de dar positivamente a sua contribuição nas discussões sobre o prenconceito de orientação sexual, porque se envolve em outras questões igualmente meritosas tanto do campo social como do estético. Ao final, nem se sabe se Francis e se Cris eram mesmo um casal homossexual ou se, de fato, eles viveram o que podem ter vivido. 

Fica-se na espera de outros espetáculos do Tríptico Coletivo e no desejo de que essa não tenha sido uma experiência traumática para ninguém. 

*

Ficha Técnica

Texto: John Marcatto | direção Victor Fontoura
Elenco: Bruno Marques | John Marcatto | Mari Bridi | Marilha Galla
Orientação: Ricardo Kosovski | Iluminação: Poliana Pinheiro | Cenário: Sátiro Nunes | Figurino: Cristina França| Arte: Nikko | Mixagem: DJ Scardua | Marketing cultural: Gloria Dinniz| Produção executiva: Ale Riquena |Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação| Realização: Tríptico Coletivo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Bem-vindo!