quinta-feira, 12 de maio de 2016

Estudo para missa para Clarice (RJ)

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Foto: divulgação

Eduardo Wotzyk

Uma versão limitada de Clarice Lispector

“Estudo para missa para Clarice – um espetáculo sobre o homem e seu deus” terminou sua terceira temporada no Rio de Janeiro no início de maio. A peça, escrita, dirigida e protagonizada por Eduardo Wotzik, estava em cartaz no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana. O texto surgiu de uma edição de trechos retirados da literatura de Clarice Lispector (1920-1977) que versam sobre vários aspectos e não apenas sobre deus. O contexto de que parte a ideia é interessante, mas o resultado submerge devido a várias questões da ordem da natureza da encenação. As tentativas de conferir teatralidade a essa literatura, que, no seu original, é tão potente, acabam por fazer o teatro parecer inadequado. E a ficcional celebração religiosa nele muito mais. Monótono!

Problemas na construção dramatúrgica
O mergulho profundo que os personagens da literatura de Clarice Lispector fazem pelo interior de si próprios acaba por fazê-los flertar com a imagem que eles têm de deus. No entanto, é consenso entre os maiores estudiosos de sua obra que o aspecto místico aparece no âmbito das experiências individuais deles e não nas da autora sobretudo porque essa questão não é dominante em livro algum dela. No romance “A paixão segundo G. H.”, publicado em 1964, para citar o melhor exemplo disso, o contato entre a personagem narradora e a barata dá à primeira a oportunidade de refletir sobre a vida de um modo geral para muito além da apenas humana. A transformação que isso promove na protagonista, porém, diz respeito a uma mudança no olhar do homem pelo homem. E não no contato dessa com deus.

O maior problema de “Estudo para missa para Clarice” é a força que o espetáculo faz em tornar teatral as palavras de Clarice Lispector. O empenho da encenação marca a tentativa de criar uma situação limitada para algo que celebremente funciona muito bem na liberdade. Em outras palavras, escrito para ser lido individualmente, na intimidade, em ritmo particular e silencioso, o texto literário é forçado a acontecer em cerimônia ritualística comunitária, codificada e pré-estabelecida nessa encenação. Nesse sentido, as dificuldades usuais em transformar essa literatura em teatro não são vencidas aqui a contento.

Ao entrar, o espectador recebe um “missal”: um folheto com leituras para reflexão e orações (e a ficha técnica do espetáculo). Duas Beatas Claricianas (interpretadas por Cristina Rudolph e por Natally do Ó) dão início ao ritual que é presidido por um Arauto (Eduardo Wotzyk). Ele tem expressão corporal e facial regularmente piedosa, sua roupa é escura e sem muitos detalhes. Há uma mesa à esquerda onde um grande livro está posto. Há poucas luzes e a trilha sonora facilmente relaciona o momento a um serviço religioso. O quadro propõe, dessa maneira, reflexões interessantes entre a experiência religiosa e a teatral para quem é público. E, pensando nessas possíveis relações, a atenção foge de Clarice e o ritmo, já cambaleante, cai vertiginosamente.

Uma missa católica é dividida em quatro partes: ritos iniciais, liturgia da palavra, liturgia eucarística e ritos finais. Na primeira parte, os fieis são saudados, há o momento de penitência e o de glorificação e a oração das ofertas. Depois, vêm as leituras, o homilia (o sermão), as preces comunitárias e individuais e as ofertas. No terceiro momento, há a consagração das hóstias e do vinho, a ceia e a ação de graças. Ao final, a benção e a despedida. Fica-se sentado em momento de reflexão, em pé em sinal de ação e de joelhos na hora da devoção. Há trechos para serem ouvidos, outros para serem ditos com a assembleia e outros para se ficar em silêncio. Durante toda o ritual, cada mínimo detalhe é codificado e diz respeito a um símbolo que foi estruturado através dos séculos desde os ritos pagãos da antiguidade até o Concílio Vaticano II, nos anos 60, quando o modelo contemporâneo se popularizou.

Em “Estudo para Missa para Clarice”, os momentos em que o público se levanta e lê os trechos do “Missal” em voz alta não têm relações com a dramaturgia, mas apenas com a encenação. A impressão é de que eles servem para dar movimento para a assistência, acordá-la. No mesmo sentido, alguns trechos mais cômicos que invadem o discurso e principalmente aqueles em que a plateia bate palmas ou martela os pés no chão. Antes que se pense que análise considera a literatura de Clarice Lispector monótona, vale dizer que se reconhece que o tempo da literatura não é o mesmo tempo do teatro. E que as melhores peças entre as várias que adaptaram a obra da autora para os palcos entenderam que a cena precisava corajosamente se curvar ao ritmo do texto escrito e não fugir dele com medo do insucesso como aqui infelizmente acontece.

Atmosfera mística
Vistos os problemas centrais da estrutura do espetáculo, cabem os elogios às interpretações de Eduardo Wotzkyk (Arauto), de Cristina Rudolph e de Natally do Ó. Dentro da proposta, eles parecem ter atingido o objetivo, estabelecendo com êxito uma atmosfera mística. Dadas as devidas oportunidades, cada intérprete atingiu a contento os desafios no âmbito das expressões e dos movimentos, o que é bastante positivo.

A peça, cuja direção de arte é assinada por Analu Prestes, tem ainda elogiosas participações do cenário e do figurino, bem como da trilha sonora de Gorécki e da iluminação de Fernanda e de Tiago Mantovani. Na contrapartida do esforço em parecer uma missa que se analisou na concepção da dramaturgia, os demais elementos estéticos vão em outra direção. Vê-se o privilégio ao homem, aos seus mistérios, às suas realidades, problemáticas e complexidades. Em conjunto, são a melhor parte do espetáculo.

No limiar entre deus e homem, “Estudo para Missa para Clarice” peca em atribuir um sentido religioso para a literatura de Clarice Lispector. A divulgação por Eduardo Wotzyk dessa leitura particular limita a liberdade tão cara do leitor de definir sua própria relação com a obra. E a empobrece.

*

Ficha técnica da missa:
Da obra de Clarice Lispector
Edição e Texto final: Eduardo Wotzyk
Direção de arte: Analu Prestes
Elenco: Cristina Rudolph, Natally do Ó e Eduardo Wotzyk
Iluminação: Irmãos Fernanda e Tiago Mantovani
Música: Gorécki
Dramaturg: Vittorio Provenza
Diretores Assistentes: Carla Ribas, Daniel Belmonte e Alexandre Varella
Operadores de Luz e de Som: Juh Galdino e Ayrton Miguel
Direção de Produção: Michele Fontaine e Jessica Leite
Direção Geral e Concepção: Eduardo Wotzyk

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