domingo, 1 de maio de 2016

Don Quichotte (SP)

Curta nossa página no Facebook: www.facebook.com/criticateatral
Siga-nos no Instagram: @criticateatral

Foto: divulgação

Don Quichotte

Uma noite memorável no Theatro Municipal do Rio de Janeiro
A ópera “Don Quichotte”, do francês Jules Massenet, foi uma coprodução do Theatro São Pedro de São Paulo e do Theatro Municipal do Rio de Janeiro que se apresentou na segunda quinzena de abril na Cinelândia. Tratou-se de uma bela oportunidade para a celebração dos 400 anos de falecimento do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). Com suas duas partes publicadas em 1605 e em 1615, o romance “Dom Quixote de La Mancha” - que foi ponto de partida para o libreto dessa composição - é tido como um dos mais relevantes da história da literatura mundial. Com concepção e direção cênica de Jorge Takla, esse espetáculo exuberante teve belíssima direção musical e regência de Luiz Fernando Malheiro com majestosos figurinos de Fábio Namatame. O elogiável cenário de Nicolas Boni se inspirou nas gravuras do desenhista francês Gustave Doré (1832-1883) que ilustram a edição de 1863. O baixo americano Gregory Reinhart interpretou o papel título, a mezzo-soprano brasiliense Luisa Francesconi a personagem Dulcineia e o barítono carioca Eduardo Amir o Sancho Pança. Os três apresentaram desempenho excelente. Em cena, 59 pessoas entre solistas, coro e bailarinos além dos músicos da orquestra sinfônica fluminense fizeram da noite um evento memorável!

Jules Massenet e seu excelente “Don Quichotte”
Além da versão de Jules Massenet (1842-1912), escrita em 1909, há outras oito óperas baseadas no romance de Miguel de Cervantes. Essa, em especial, toma como principal inspiração o drama heroico “Le Chevalier de la longue figure”, do francês Jacques Le Lorrain (1856-1904), publicado em 1906. Composta em cinco atos, a ópera estreou em Mônaco em 19 de fevereiro de 1910, sendo a 31a entre as 34 óperas de Massenet. (Ele é também o autor de “Manon”, aquela que fez a cantora lírica brasileira Bidu Sayão (1902-1999), em 1937, ficar conhecida internacionalmente.) Em 1926, houve uma montagem brasileira de “Don Quichotte” que se apresentou em 6 de agosto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e cinco dias depois no Municipal de São Paulo.

Assim como as canções, a dramaturgia é belíssima e muito adequada ao momento de hoje: a ocasião dos 400 anos da morte de Cervantes. Isto porque a ópera “Don Quichotte”, apesar das diferenças com o romance, tem muito do espírito barroco. No fim do século XVI, as literatura de cavalaria estava fora de moda e as narrativas pastorais ganhavam a península ibérica contra-reformista. Entre outras coisas, por “pastoral”, se entende uma história em que o campo abriga (e é metáfora para) os grandes valores humanos. Em outras palavras, é onde o homem consegue ser mais efetivamente “imagem e semelhança de Deus”. “O Ameto” (1341), de Boccaccio, e “Arcádia” (1489), de Sannazaro, retomando a literatura grega e romana, faziam muito sucesso. Elas são prováveis inspirações para Cervantes escrever seu “La Galateia”, em 1585, romance que deu contorno completamente novo para o gênero pastoril. (Quase três séculos depois, Charles Baudelaire vai continuar o caminho começado por Cervantes.)

“La Galateia” e “Dom Quixote de La Mancha” são o início e o fim da carreira literária de Miguel de Cervantes (1547-1616). No meio disso, os reinados de Felipe II e de Felipe III, em que a arte – literatura, teatro, pintura, música – deram ao período o nome de Século de Ouro Espanhol, enfrentavam a problemática situação financeira do vastíssimo reino de Espanha. Os homens da península haviam morrido nas guerras, o dinheiro que partia das colônias afundava no oceano ou era surrupiado por uma nobreza corrupta, a fome a doença conviviam com o mágico (e falso) mundo onde o “sol nunca se punha” e a honra e a fé dignificavam a humanidade. O cavaleiro Dom Quixote é metáfora para todo esse quadro de contradição, de instabilidade e sobretudo de complexidade.

Belíssima narrativa
Na obra de Massenet, o Cavaleiro da Longa Figura é amado e repudiado pelo povo. Sua coragem e sua honra são ridicularizadas em alguns momentos, mas respeitadas em outros. O interior do personagem, em duelo com o que dele se vê, faz emanar naqueles com quem ele convive o que há de pior e também o que há de melhor. A cidade, onde as festas e a corrupção têm lugar, fica em oposição ao campo, onde ladrões são purificados. Tal qual na comédia “As you like it” (1603), de William Shakespeare (que morreu exatamente um dia depois de Cervantes), mas com muito mais potência, a vida é uma ilusão, o mundo é um teatro e nos dois há donzelas cortesãs e ferozes moinhos de vento.

A canção “Quand la femme a vingt ans” abre a cena com força, alegria e pujança. Ela mostra a exuberância da cultura espanhola através principalmente de um belíssimo número de da dança flamenca e da beleza da cortesã Dulcineia (Luisa Francesconi). Entram Don Quichotte (Gregory Reinhart) e Sancho Pança (Eduardo Amir) quando se ouve “Quand apparaissent les étoiles”. Um duelo inicia entre seus admiradores, mas é desfeito por Dulcineia que desafia o Cavaleiro a restituir-lhe um colar de pérolas que lhe foi roubado. Ele aceita o desafio e sai. Na cena seguinte, depois de brigar com moinhos de vento, que acredita serem inimigos gigantes, Don Quichotte é atacado por bandidos, mas reza a Deus para que Ele perdoe suas almas (“Seigneur, reçois mon âme, ele n’est pas méchante”). Isso modifica as almas dos ladrões. Eles se arrependem e são abençoados por quem queriam matar. Antes de sair, entregam a Don Quichotte um colar de pérolas, o mesmo que pertencia à Dulcineia.

No quarto ato, Don Quichotte volta à cidade para mostrar que venceu o desafio dado e pedir a mão de Dulcineia. Diante de todos, ela o rejeita. Sozinha com ele, pede-lhe desculpas em “Oui, je sofre votre tristesse, et j’ai vraiment chagrin à vous désemparer”, o beija e mantém a negativa. Desolado, Don Quichotte se retira com Sancho Pança e morre. Depois da belíssima canção “Prends cette île”, o público vai embora condoído por ter visto o bem em um homem e o mal na humanidade.

Luisa Francesconi

A exuberância da montagem dirigida por Jorge Takla
A montagem dirigida por Jorge Takla tem a exuberância que é comum de se encontrar em suas produções. Tudo é bonito, equilibrado e de extremo bom gosto. Há uma concepção estética que se mostra clara em sua potência. O cenário de Nicolas Boni, com as gravuras de Gustave Doré, revelam esse mundo cheio de sucessos e de fracassos, onde as pessoas já não se conhecem, mas seus nomes de família valem mais que suas posses. O campo e a cidade são lugares perigosos, mas a enorme Espanha é um lugar seguro para todos os espanhóis. E feliz em suas contradições religiosas, sociais e artísticas. As coreografias de flamenco de Nuria Castejón exploram esse aspecto positivamente. Há ainda o figurino esplêndido de Fábio Namatame e a luz de Ney Bonfante no todo para corroborar com essa imagem de sonho que Cervantes, Lorrain, Massenet e que Takla exortam no quadro narrativo.

Os solistas Gregory Reinhart (Don Quichotte), Luisa Francesconi (Dulcineia) e Eduardo Amir (Sancho Pança), mas também os personagens nos secundários, Roseane Soares, Marianna Lima, Anibal Mancini e André Rabello estão em excelentes trabalhos. O coro e a orquestra sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, regidos pelo maestro e diretor musical do espetáculo, Luiz Fernando Malheiro, completam os méritos da enorme produção com delicadeza, técnica e energia. Em tudo, é um belo trabalho.

400 anos
Não se comemoram 400 anos sem Miguel de Cervantes no mundo com “Don Quichotte”, mas se celebra seu descanso na eternidade com espetáculo digno da beleza de sua obra. Viva Cervantes!

*

SERVIÇO
DON QUICHOTTE – Ópera em cinco atos
CORO E ORQUESTRA SINFÔNICA DO THEATRO MUNICIPAL
Coprodução com o Theatro São Pedro (SP)
Música – Jules Massenet
Libreto – Henri Cain, com base na peça "Le Chevalier de La Longue Figure", de Jacques Le Lorrain, inspirada na obra de Miguel de Cervantes
Direção Musical: Luiz Fernando Malheiro
Regência: Luiz Fernando Malheiro e Pedro Messias
Concepção e Direção Cênica – Jorge Takla
Cenografia – Nicolas Boni
Figurino – Fábio Namatame
Desenho de Luz – Ney Bonfante
Coreografia – Nuria Castejón

Solistas:
Gregory Reinhart, baixo – Don Quichotte
Luiza Francesconi, mezzo-soprano – Dulcineia
Eduardo Amir, barítono – Sancho Pança
Roseane Soares, soprano – Pedro
Marianna Lima, soprano – Garcias
Anibal Mancini, tenor – Rodriguez
André Rabello, barítono – Juan
Coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Maestro Titular – Jésus Figueiredo


Patrocínio:
BNDES

Apoio:
CVC Viagens e Turismo
Hotéis Othon
O Globo
Rádio SulAmérica Paradiso
Livraria da Travessa
Rádio MEC
Civil Master
Petroserv