Ivan Vellame, Isabel Fillardis, Helga Nemeczyk e Ruben Gabira em cena |
Um pouco da história do teatro colonial brasileiro
O musical “Lapinha” conta uma bonita história que vale a pena ser conhecida. Através de belíssimas composições de Wladimir Pinheiro, Isabel Fillardis dá vida à cantora Joaquina Maria Conceição da Lapa, a primeira cantora lírica brasileira a ganhar destaque internacional, feito esse que fica ainda maior por ela ter sido uma mulher negra que viveu no fim do século XVIII e início do XIX. Com direção de Edio Nunes e de Vilma Melo, seu trabalho de interpretação é bastante bom, como também o de Helga Nemeczyk. Com uma dramaturgia superficial e figurinos bastante ruins, o espetáculo está em cartaz no Teatro Clara Nunes, no shopping da Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro.
Sabe-se que Joaquina Maria Conceição da Lapa, a Lapinha, nascida em Minas Gerais, viveu no Brasil na segunda metade do século XVIII e início do século XIX, tendo morado em Lisboa mais ou menos entre 1791 e 1805. Sua fama foi grandiosa por vários motivos. Em primeiro lugar, Lapinha era mulher quando as mulheres recém ganhavam o espaço antes ocupado por homens castrados. Era americana, isto é, era nascida no Novo Mundo e, por isso, exótica o bastante para despertar curiosidade do público. Além disso, era negra em uma época em que havia dúvidas se os negros e os brancos eram iguais apesar da diferença no tom da pele. Por fim, era uma soprano colatura (isto é capaz de produzir várias notas agudas em uma mesma sílaba) e, por isso, arrebatava as audiências para as quais se apresentava. Não se sabe ao certo quando ela exatamente retornou ao Brasil, mas registros apontam que foi antes da vinda da Família Real, em 1808. Seu último vestígio data de 1814 quando consta como herdeira do poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814). No Brasil, foi destaque da companhia de Antônio Nascentes Pinto (Teatro dos Amadores na Cinelândia), na Ópera Velha, também chamado de Teatro Régio Manuel Luiz (onde hoje se encontra o Palácio Tiradentes) e no Teatro São João (Teatro João Caetano). É conhecido também que Lapinha foi diva de vários artistas importantes da época, entre eles Nunes Garcia (1767-1830) e Marcos Portugal (1762-1830), tendo interpretado papéis protagonistas em óperas como “O Barbeiro de Sevilha”, de Giovanni Paisiello. Sem dúvidas, a iniciativa de apresentar essa personagem célebre da história do teatro brasileiro é um feito bastante elogiável dessa montagem.
A dramaturgia de João Batista é fraca, porque superficial além de excessivamente linear. O texto de “Lapinha” se justifica em cena, situando um grupo de quatro personagens sem nome e sem importância em um museu contemporâneo observando um quadro de Lapinha. Nessa tela fictícia (uma sutil referência à imagem de Lapinha pintada por Mello Menezes), a cantora lírica aparece retratada como se fosse branca, sendo negra. Ou seja, desde o início, a peça é menos sobre a vida da cantora lírica e mais sobre o preconceito racial. O diálogo entre os visitantes do museu (Zezeh Barbosa, Helga Nemeczyk, Ivan Vellame e Ruben Gabira) e o faxineiro (Naná Nascimento) é intercalado com as cenas em que aparece Joaquina Lapinha (Fillardis) ainda adolescente e depois adulta na narrativa superficial sobre supostos fatos de sua vida. O primeiro amor, a chegada ao Rio de Janeiro, a ida à Corte, o relacionamento com o poeta portuense João Evangelista de Morais Sarmento (1773-1826) e a volta ao Brasil são fatos que aparecem dispostos ao longo do tempo comportadamente. Em toda a peça, o ponto de vista sobre a personagem é o de uma heroína romântica em cuja vida só houve sofrimento. É pouco.
O contexto insólito da dramaturgia ofereceu pouco à direção de Edio Nunes e de Vilma Melo, cujo trabalho também não apresentou melhor resultado. Os atores, quase sempre virados para o público, demoram para entrar em cena. As marcações são duras e ficam piores quando querem fazer graça, como na cena dos binóculos, por exemplo. Não houve a tentativa de criar o efeito de profundidade, nem equilibrado uso do espaço cênico. Quanto às interpretações, merecem positivos destaques Helga Nemeczyk, cuja personagem é a da cantora lírica que se sente ameaçada pelo sucesso de Lapinha, e Isabel Fillardis. Ambas têm os melhores momentos nos quadros em que elas duelam através do canto lírico. É delicioso ver o embate! O grande carisma de Zezeh Barbosa marca bem a sua participação.
O melhor de “Lapinha” são as composições originais assinadas por Wladimir Pinheiro. Embora oscile entre o estilo lírico e o popular, a beleza das melodias e de suas interpretações ao vivo pelo elenco e pelo conjunto de músicos garantem entretenimento de qualidade, evidenciando Pinheiro como um compositor e um diretor musical que merece mais destaque na cena brasileira. O pior da montagem são o cenário e os figurinos da Espetacular! Produções e Artes (Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo). A articulação entre o conceito que norteou a criação do vestuário e o espetáculo a que ele se destina não é visível, o que é problema também do visagismo de Mona Magalhães. A transformação de peças de roupas jeans em casacas, o uso exaustivo de estampas diferentes todas em azul, a armação exposta do vestido de Nemeczyk versus o vestido branco de Fillardis não se justificam, enfeando o espetáculo decorado pobremente por cortinas em estilo francês. De forma isolada, podem até esses elementos terem suas belezas asseguradas, mas, como parte do espetáculo, eles não contribuem.
“Lapinha” pauta a relevância da história do teatro colonial brasileiro e dos personagens que protagonizaram esse período pouco lembrado. Tem ainda o mérito de destacar o preconceito que, desde sempre, marcou negativamente o desenvolvimento de nossa civilização. Deve ser visto ainda porque apresenta qualificado trabalho de Wladimir Pinheiro, de Helga Nemeczyk e de Isabel Fillardis.
Ficha Técnica
Texto: João Batista
Direção: Edio Nunes e Vilma Melo
Letras, músicas, arranjos e direção musical: Wladimir Pinheiro
Elenco: Isabel Fillardis, Zezeh Barbosa, Helga Nemeczyk, Ivan Vellame, Naná Nascimento e Ruben Gabira
Orquestra: Felipe Tauil, Gabriel Gravina, Isabelle Albuquerque, Luiz Felipe Ferreira e Whatson Cardozo
Iluminação: Aurelio De Simoni
Sonorização: Andrea Zeni
Cenografia e Figurino: Espetacular! Produções e Artes (Ney Madeira, Dani Vidal e Pati Faedo)
Visagismo: Mona Magalhães
Preparação vocal: Ester Elias e Marcelo Sader
Programação visual e fotografia: Leo Viana
Direção de palco e assistete de produção: Ailime Cortat
Operador de luz: Anderson Schineider
Operador de som: Arthur Ferreira
Microfonista: Victor Licazali
Contrarregra: Marcus Callegario
Assistentes de Fotografia: Heloah Bacellar e Leonardo Alves
Assistente de sonorização: Joyce Santiago
Equipe de montagem de som: Arthur Ferreira, Victor Licazali e Uberlan
Assistente de Cenário e Adereços de Cena: Vinícius Lugon
Assistente de Figurino: Bruma Nattrodt
Perucas: Divina Lujan
Confecção de panier: Claudia Taylor
Costura: Atelier Três Meninas
Cenotécnica: André Salles e Equipe
Costura de Cenário: Rosângela Lapas
Assessoria de imprensa: Will Comunicação e Luiz Menna Barreto
Produção Executiva: Deborah Aguiar e Alessa Fernandes
Direção de produção: Isabel Fillardis e Leticia Napole
Adoro suas resenhas, são REAIS e ESCLARECEDORAS ! Parabéns ♡
ResponderExcluirObrigada, seu maravilhoso!!! Agreed!!! Beijo Helga
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