segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Festa de Família e O Funeral (RJ)

Foto: divulgação

Thiago Guerrante, Jaime Leibovitch e Xuxa Lopes em cena
em "Festa de Família"



Bravíssimo!!


            O teatro nunca vai morrer, mas é por espetáculos como “Festa de Família” e como “O Funeral” que ele vai continuar existindo. Dirigidas por Bruce Gomlevsky, essas peças em cartaz no Teatro Poeirinha, em Botafogo, podem ser compreendidas como uma só, embora possam ser assistidas também em separado. A primeira é uma adaptação de David Eldridge do filme homônimo do dinamarquês Thomas Vinterberg, cujo roteiro também é assinado por Mogens Rukov e por Bo Hr. Hansen. Lançado em 1998, “Festa de Família” (“Festen”) foi o primeiro filme resultante do movimento Dogma95, esse aberto por Vinterberg, por Lars von Trier e por outros diretores com o intuito de manter a sétima arte o mais longe possível das consequências do mercado e do avanço tecnológico que pudessem corrompe-la. Escrito em 2011, o roteiro de “O Funeral”, também assinado por Mogens Ruko, é inédito no país inclusive no teatro. As duas montagens compõem, juntamente com “A Volta ao Lar”, de Harold Pinter, e com “O Homem Travesseiro”, de Martin McDonagh, o que a Companhia Teatro Esplendor chamou de Tetralogia do Abuso. As análises desses outros espetáculos também se encontram nesse blog.

            “Festa de Família” começa com a chegada dos convidados à festa de aniversário dos 60 anos de Helge (Jaime Leibovitch), o patriarca da família que é dona do antigo hotel onde a celebração acontece. Na cena inicial, Michael (Gustavo Damasceno), o filho mais novo, chega com a esposa (Glauce Guima) e com uma filha (Sofia Viamonte), mas é barrado pelo funcionário Lars (Felipe Cabral). Michael não foi convidado, porque, no ano anterior, ele faltara ao velório de Linda, sua irmã, que cometera suicídio. É Christian (Bruce Gomlevsky), irmão gêmeo de Linda, quem garante a entrada de Michael, cujo modo de falar deixa claro o quanto o preconceito de classe (depois, racial) protege sua identidade. Uma coleção de músicas folclóricas une o homenageado e seu pai já senil (Silvio Matos), sua esposa (Xuxa Lopes), seus filhos, sua neta e os funcionários em uma cerimônia repleta de formalidades que vão dos trajes aos usos do aparelho de jantar. Por outro lado, as vidas particulares dos indivíduos são igualmente expostas em uma teia de relações em que todos sabem de todos os segredos menos um. Esse, no entanto, será revelado por Christian, em cujo discurso poderá ficar claro o motivo que provavelmente levou Linda à morte no ano anterior. Um dos aspectos mais vibrantes da dramaturgia de Vinterberg é o fato de que, apesar de terrível, a revelação de Christian não consegue derrubar o laço forte que estrutura essa família tradicional em seu encontro festivo. Será preciso que a voz de Linda saia do túmulo para mudar o contorno da situação, pois só uma pessoa morta pode afetar um repertório de comportamentos tão sem vida.

            Em “O Funeral”, os irmãos Christian (Gomlevsky), Michael (Damasceno) e Helene (Luiza Maldonado) estão de volta ao hotel da família dez anos depois do último encontro para enterrar o pai, morto no dia anterior. Helge (Leibovitch) morrera de causas naturais, falecendo vítima de um ataque cardíaco seguido de queda na escada segundo consta. A cerimônia, bem mais privada do que a anterior, é novamente lugar para discursos aterradores. Dessa vez, de um lado, as figuras de acusador e de acusado se fundem. De outro, o enterro do velho patriarca é a confirmação de sua vida enquanto o sono do neto Henning (Raul Guaraná) é o velório de sua infância. Em Michael, o pior de todos os seres humanos, recai a possibilidade de redenção da humanidade, essa que ainda guarda em si a semente da corrupção que a vida adulta poderá fazer aflorar. O melhor na dramaturgia de Vinterberg aqui é como a história parte de um ponto reacionário, moralista e romântico, passando por um lugar trágico para chegar a uma explosão de símbolos que reflete a complexidade de nosso tempo.

            Não há uma só gota de sangue latino tanto em “Festa de Família” como em “O Funeral”, porém a direção de Bruce Gomlevsky, assistida por Elisa Tandeta, não fez disso uma barreira, mas um desafio que é plenamente vencido. Eis aqui, por isso, um trabalho primoroso cuja marca mais sensível talvez seja o modo inteligente como essa história e esses personagens chegam a nós. Em um dos espetáculos, o público toma parte da mesa. Em outro, o palco ora circunda a audiência, ora está no meio dela. Com isso, a podridão que emana dessas figuras infesta a plateia de modo que quem assiste assiste e não apenas vê, o que é também mérito do cenário de Bel Lobo. Além disso, visivelmente, nada do que é dito ou feito em cena é desamparado por uma concepção firme: gritos e sussurros se equiparam como também a luta, o choro, a masturbação, a festa e a conversa. Dentre todos, os melhores momentos das duas produções, no entanto, são os silêncios, esses cheios de uma vitalidade pulsante que valoriza a palavra que os sucede.

            Da virilidade da performance de Damasceno (Michael) à ardilosidade de Gomlevsky (Christian) e de Leibovitch (Helge), todos os dois espetáculos são compostos por excelentes interpretações, elogiando ainda a força agressiva nas participações de Glauce Guima (Mette) e de Luiza Maldonado (Helene) e na doce ingenuidade de Carolina Chalita (Pia), de João Lucas Romero (Kim) e de Silvio Matos (Avô). Contudo, merece destaque a excelente atuação de Xuxa Lopes (Else) pela responsabilidade do seu personagem na defesa da história. De forma muito delicada, a atriz apresenta a exuberância da mãe que é filtro de todas as emoções e a base mais duradoura de todas ações com as quais a história se narra. Brava!

            “Festa de Família” e “Funeral” têm ainda desenhos de luz respectivamente bem criados por Maneco Quinderé e por Elisa Tandeta e direção musical de Marcelo Alonso Neves, sendo que a trilha sonora original da segunda é do polonês Zgbibiew Preisner, famoso pelas composições musicais dos filmes do mestre Krzysztof Kieślowski. Quanto aos figurinos de Ticiana Passos, há positivo destaque para a forma como os mesmos personagens aparecem nas duas produções, considerando os anos narrativos que passam entre os dois momentos da história.

            À mesa, na hora de falar, Christian pede ao pai que escolha um entre os dois discursos que ele planejou. Helge escolhe o verde, aquele que Christian chama de “O discurso da verdade” ou de “Os banhos do meu pai”. Helge não escolhe o amarelo que permanece, por isso, em silêncio. O muito que se diga haverá sempre muito que não será dito. O silêncio permanece um grito ensurdecedor. Bravíssimo!

*

FICHA TÉCNICA

 Festa de Família
Texto: Thomas Vinterberg, Mogens Rukov e Bo Hr. Hansen
Adaptação teatral: David Eldridge
Direção: Bruce Gomlevsky
Tradução: José Almino

 Elenco:
Bruce Gomlevsky/ Christian
Carolina Chalita/ Pia
Felipe Cabral / Lars
Glauce Guima / Mette
Gustavo Damasceno/ Michel
Jaime Leibovitch / Helge
João Lucas Romero / Kim
Luiza Maldonado / Helene
Luiz Felipe Lucas / Gbatokai
Ricardo Ventura / Poul
Silvio Matos / avô
Sofia Viamonte / Sofie (a menina)
Thiago Guerrante / Helmut
Participação especial de Xuxa Lopes como Else

Cenografia: Bel Lobo
Iluminação: Maneco Quinderé
Figurino: Ticiana Passos
Direção musical: Marcelo Alonso Neves
Fotos: Tatiana Farache
Design gráfico: Mauricio Grecco
Assistente de direção: Elisa Tandeta
Direção de produção e coordenação de projeto: Rafael Fleury
Produção: BG artEntretenimento Ltda
Realização: Cia Teatro Esplendor
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stella Stephany

 O Funeral
Texto: Thomas Vinterberg e Mogens Rukov
Direção: Bruce Gomlevsky
Tradução: Ricardo Ventura

 Elenco:
Bruce Gomlevsky / Christian
Carolina Chalita / Pia
Gustavo Damasceno / Michael
Jaime Leibovitch / Helge
João Lucas Romero / Kim
Luiza Maldonado / Helene
Raul Guaraná / Henning (o menino)
Thalita Godoi / Sofie
Participação especial de Xuxa Lopes como Else

 Cenografia: Bel Lobo e Bruce Gomlevsky
Trilha sonora original: Zgbibiew Preisner
Iluminação: Elisa Tandeta
Figurino: Ticiana Passos
Fotos: Tatiana Farache
Design Gráfico: Mauricio Grecco
Assistente de direção: Elisa Tandeta
Direção de produção e coordenação de projeto: Rafael Fleury
Produção: BG artEntretenimento Ltda
Realização: Cia Teatro Esplendor
Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação - João Pontes e Stella Stephany

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