quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Casa de Cômodos (RJ)

Foto: Eduardo Moraes (Em Neon)
Deo Garcez, e Kenya Costta em cena


Uma boa história nunca morre

O maior mérito de “Casa de Cômodos” é a coragem do grupo de declarar, com alta dose de talento e de técnica, que uma boa narrativa não morre, nem entra em desuso. O espetáculo, um drama bem a la Douglas Sirk e às novelas do rádio, conta a história de pessoas que tiveram seus destinos modificados a partir da chegada de Francisco, primo do dono de um cortiço no Rio de Janeiro, na primeira metade do século XX. Preconceitos de gênero, de raça, de classe social são tematizados no texto que é assinado por Cecília Terrana e que ganha a delicada e pontual direção de Marcelo Marques. A peça integra o projeto “Sartre Mais Uma” e está em cartaz no Solar de Botafogo.

A história se passa em uma grande casa cujos cômodos são alugados pelo português Seu Antônio para famílias e para pessoas solteiras. No início, acontece a chegada de Francisco, vindo de Lisboa, que veio para preparar a vinda de sua irmã, a futura esposa de Antônio. Francisco reage negativamente ao que vê: pessoas brancas e negras vivendo sob o mesmo teto, mulheres solteiras dando conta do seu próprio sustento sem a ajuda de um homem, o calor dos trópicos. A rotina da casa de cômodos se modifica. Elisa, a costureira, não aceita as investidas de Francisco e o ódio dele aumenta ainda mais quando ouve um homem e uma mulher gemendo no banheiro de uso comum. Nessa dramaturgia de Cecília Terrana, o espectador adentra os pequenos quartos e o universo de quem vive dentro deles. Os valores sociais, morais e religiosos entram em choque. Positivamente, a curva ascendente aponta para um fim em diálogos ágeis, mas não econômicos, com cenas que impõem uma estrutura dramática como raramente se vê hoje em dia. E, por isso, mas também porque é bem feito, de grande mérito.

O diretor Marcelo Marques, que também assina o cenário e o figurino, divide o pequeno palco do Solar de Botafogo em pequenos ambientes, carregando na força de pequenos detalhes que, cheios de potenciais, podem dar a ver o todo do espaço em sua riqueza dentro da história. Na encenação, o público está diante de cenas longas em um ritmo e em um estilo que, muito perigosamente, flertam com o exagero, mas mantêm-se no bom gosto. O gesto firme da direção expressa uma concepção madura, corajosa e cheia de si.

Todos os atores exibem ótimos trabalhos, aproveitando suas oportunidades mais e menos numerosas para dar vida a uma estrutura narrativa que é coesa e coerente. O núcleo negro da história (Deo Garcez, Kenya Costta e Soraia Arnoni) investe na variação linguística que celebrizou os personagens afrodescentes das grandes histórias do século XX, sem permitir algo que não seja grande carisma. Os personagens se apresentam a partir de sua fé e de seus valores morais, mas principalmente, na história, do grande amor que sentem um pelo outro. Na outra ponta, os portugueses Antônio (Marco Aurélio Hamellin) e Francisco (André Frazzi) também fazem bom uso do sotaque, criando oposições e similaridades entre ambos que ajudam a expressar a complexidade da dupla de antagonistas. Elisa (Adriana Zattar), a heroína, está investida de força e de vigor de forma que, na maior adversidade, ela não se curva. Por tudo isso, destacar um só trabalho de interpretação nesse elenco seria produzir uma avaliação injusta. Dentro dos protagonismos e das coadjuvâncias, o conjunto  apresenta excelente performance na movimentação, na forma como diz os diálogos, nas construção de uma esfera significativa potente e delicada.

“Casa de cômodos” representa um tipo de teatro que valoriza a quarta parede, que depende da catarse, em que texto, direção e interpretação não se completam sozinhos, nem são suficientes. Em paralelo a opiniões artisticamente preconceituosas, de que esse gênero já não tem nada a nos dizer, a produção se apresenta cheia de méritos e merece aplausos. Vale a pena observar como os pequenos ambientes são construídos e como constroem espaços que  são vivos e ajudam a pulsar a história que se conta fluentemente. Parabéns!

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FICHA TÉCNICA
Autora: Cecília Terrana
Direção: Marcelo Marques
Assistentes de direção: Cecília Terrana e Deborah Catalani

Elenco:
Adriana Zattar, André Frazzi, Deo Garcez, Kenya Costta e Soraia Arnoni.
Ator convidado Marco Aurélio Hamellin.

Preparação corporal: Carmen Luz
Preparação vocal e prosódia: Maria Luísa Valor
Trilha sonora: Marcelo Marques
Fotografia: Luca Machado

Projeto Sartre Mais Uma
Cenário e Figurinos: Marcelo Marques
Assistente de figurino e costureira: Sônia Lourenço Coutinho
Assistente de cenografia: Jennyfer Baptista
Iluminação: Leysa Vidal
Programação visual: Marcelo Marques
Arte final: Augusto Batista (Art Press Design)
Produção Executiva: Beth Bessa
Assistentes de produção: Augusto César de Oliveira e Cecília Terrana
Divulgação/assessoria de imprensa: Ana Gaio
Coordenação do Projeto: Anita Terrana
Realização: Sereníssima Produções Artísticas

Um comentário:

  1. Sua crítica é primorosa. O que é bom não envelhece. A moda manda, obedece quem não tem argumentos para contrapor. Apenas uma correção: o dono da casa é o Sr. Antônio. Joaquim é o sapateiro interpretado por Déo Garcez. Parabéns!

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