Comédia refinadíssima
O ótimo “Doppelgänger – O mito do duplo”, com texto e direção de Domingos de Oliveira, é a nova versão do espetáculo produzido pela primeira vez em 1992. Agora com Priscilla Rozenbaum, Ricardo Kosovski e André Mattos nos personagens antes interpretados por Glória Menezes, Tarcísio Meira e Ednei Giovenazzi, a comédia está em cartaz no Teatro Sergio Porto, no Humaitá, zona sul do Rio de Janeiro. Com altas doses de excelente humor, a peça ratifica o talento do mais importante dramaturgo brasileiro vivo e em plena atividade.
“Doppelgänger” é uma palavra em alemão que quer dizer o duplo de alguém. Trata-se de um mito multicultural segundo o qual existe outra versão de nós mesmos andando por aí. Para os bretões e fenícios, é um tipo de fantasma. A lenda egípcia “A princesa grega” narra como o aparecimento de uma outra Helena resolveu a Guerra de Troia. Há uma lenda inglesa segundo a qual o duplo de Sir George Tryon voltou para sua casa em Londres após o naufrágio do navio Victória em 1893. O tema também aparece em vários filmes de ficção de científica: “Doppelgänger” (1969) dirigido por Robert Parrish, “The stranger” (1973) por Lee Katzin, “Doppelgänger” (1993) por Avi Nesher, “Another Earth” (2011) por Mike Cahill, entre outras obras de toda sorte de manifestação artístico-cultural. O tema segue sendo rico e interessante: como seria encontrar-se com um duplo?
Na história da peça, Julio Matos (Ricardo Kosovski) e Julia Vieira (Priscilla Rozenbaum) são um casal de atores famosos no teatro e na televisão há muitos anos. Na medida do possível, apesar de uma bissexualidade latente nele, o casamento vai bem até que, numa sessão de terapia, Julio revela ao seu analista, o doutor Marco Aurélio (André Mattos), que está sendo perseguido por alguém que desconhece. A partir disso, a plateia não consegue saber se quem está em cena é Julio ou seu duplo.
Trata-se uma comédia refinadíssima. No texto escrito e dirigido por Domingos de Oliveira, o clima de deboche do cinema noir justifica as frases longas, os diálogos compridos, as digressões intermináveis. As cenas de “Doppelgänger - O mito do duplo” remetem aos planos internos, escuros e cheios de frases com duplo sentido, sangue, pólvora e fumaça de cigarro que caracterizaram o cinema dos anos 30 a 50, mas em um tom farsesco que é muito inteligente. Quase toda a história se passa no mal iluminado consultório do sorumbático Marco Aurélio, que ama Julia em segredo, cheio de culpa e de ódio de seu paciente Julio. Como uma boa femme fatale, Julia aparece loira, atraída sexualmente pelo sexo mais violento, suscetível aos aplausos e voraz com seus diamantes, invadindo a sala do psiquiatra em busca do marido desaparecido. Nas sequências de ação, a crítica ao show business, à hipocrisia social, ao casamento de aparências surge, dando corpo e vida para a trama contada em pouco mais de sessenta minutos em fluxo exuberante.
Os excelentes trabalhos de interpretação marcam a contribuição do teatro ao texto de Domingos de Oliveira. André Mattos deixa ver um psiquiatra tímido, preocupado, mas muito emotivo, que é o morador do lugar onde a história acontece e por isso, de certa forma, o anfitrião do público. Priscilla Rozenbaum é uma Júlia positivamente indecisa entre o sexo, o amor e o trabalho, a fama, o talento e o dinheiro. Seus movimentos ratificam as falas que giram de um valor ao outro, escapando das definições e movimentando a narrativa. Ricardo Kosovski apresenta um Julio ardiloso, com ironia possível, loucamente curioso pela outra versão de si. Na sua interpretação, são vistas mudanças rápidas e pontuais de tom, multiplicidade de intenções e variedade de formas.
Os figurinos de Ronald Teixeira e de Eloy Machado ajudam a ambientar a história no mormaço de um suspense que é ricamente criticado. O veludo grosso do vestido e as botas de Julia, a gabardine do Marco Aurélio, o chapéu, o colete e o paletó xadrez de Julio fazem uma apologia ao mundo regrado a que pertencem esses personagens. É por causa desse mundo que eles aparecem submersos em meio às emoções, autores de atos absurdos para eles e que são cômicos para o público. A iluminação de Fernanda e de Tiago Mantovani resulta em um dos melhores trabalhos do ano nesse item vistos no Rio de Janeiro. Além de quadros de grande beleza, os recortes de luz e de sombra preenchendo os espaços vazados ajudam a construir a estrutura espaço-temporal em que a história se conta.
Entre tantos méritos, “Doppelgänger” confirma a máxima de que um bom resultado em artes não é mérito de uma só pessoa, mas de uma equipe de elementos bem envolvidos a partir de um conceito sólido e que se abre para o olhar do público com sinceridade. Quando uma equipe se iguala a Domingos de Oliveira, é sorte de quem assiste.
*
FICHA TÉCNICA:
Autoria e direção: Domingos Oliveira
Elenco: Priscilla Rozenbaum, André Mattos e Ricardo Kosovski
Cenografia: Ronald Teixeira
Figurinos: Ronald Teixeira e Eloy Machado
Luz: Fernanda Mantovani e Tiago MantovaniProdução: Renata Paschoal e Tatiana Trinxet
Assessoria de Imprensa: Leila Meirelles
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Bem-vindo!