Eliane Coelho e Lício Bruno em cena no Theatro Municipal |
Foto: Leonardo Pergaminho
A brava Eliane Coelho
“Salomé”,
a nova produção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, marca os 150 anos do
nascimento do alemão Richard Strauss (1864-1949). Montagem assinada por André
Heller-Lopes, com regência de Silvio Viegas, a peça conta com a soprana Eliane
Coelho (Salomé), o baixo-barítono Lício Bruno (João Batista), o tenor irlandês
Paul McNamara (Herodes) e com a mezzo-soprana Carolina Faria (Herodias) nos
papeis principais. O libreto, da poetisa Hedwig Lachman, é baseado na peça
homônima de Oscar Wilde. Lançada em 1905 com muito sucesso, essa ópera é
referencial por vários aspectos, muitos deles positivamente encontrados na produção
em cartaz na Cinelândia.
Três
semanas depois de “Salomé” estrear em Dresden, na Alemanha, Viena apresentou ao
mundo a opereta “A viúva alegre”, de Franz Lehár. O mês de dezembro daquele
ano, assim, simbolizava um período marcante na história do teatro musical. De
um lado, Strauss, um jovem de 39 anos, cujo pai havia falecido há poucos meses, ainda representava o erudito romantismo tardio,
descendente de outro alemão, Richard Wagner. De outro, uma história popular
ganhava notoriedade, pautas, dinheiro e fama. Recuperando personagens bíblicos em uma situação
narrativa que atingia o seio da burguesia, Strauss, ao lado de Wilde,
valorizava a aristocracia, o classicismo e a erudição, levando a música,
através da troca de séculos, para além dos moralismos e dos sentimentalismos
melodramáticos. Morto em 1900, o irlandês Oscar Wilde escreveu “Salomé” em
francês em 1891. A peça, censurada em vários países, incluindo a Inglaterra, era
o seu ponto de vista sobre o que levou Salomé a pedir a cabeça de João Batista
na corte da Galileia (ver Mt 14,1-11). Dez meses antes, João Batista havia sido
preso por Herodes Antipas, líder da Galileia, porque, entre outras coisas,
acusava o teatrarca de traição. Herodias, sobrinha e esposa de Filipe, havia
abandonado o marido para viver com seu cunhado (e tio) Herodes, levando consigo
sua filha Salomé. Superticioso, Herodes não queria matar o João Batista (primo
de Jesus, que ainda não era conhecido), mas, embevecido pela beleza da enteada,
jurou fazer qualquer coisa que ela pedisse se dançasse para ele. Na cena mais
famosa da ópera, Salomé faz a sensual “Dança dos Sete Véus” e exige a cabeça do
prisioneiro em uma bandeja de prata. Nas cenas iniciais, a personagem-título
havia convencido um soldado (amante seu) de soltar o prisioneiro para que ela o
visse. João Batista, nesse momento, havia ofendido seus brios, não permitindo
que ela o tocasse e nem mesmo pousando sobre ela o olhar. Wilde e Strauss
terminam a narrativa com a imagem macabra de Salomé beijando os lábios
cadavéricos da cabeça decepada do condenado, dizendo que é mais difícil
resolver o amor do que a morte. Em um ato só, contada em um só fôlego, a
história une a tragédia e o romantismo naquilo que outro alemão, Hegel, definiu
como o fim, o êxtase, da arte.
No
palco do Theatro Municipal, belos cantores e belos músicos narram a história em
cem minutos com nenhum corte nas partituras. Lício Bruno e Paul MacNamara têm
participações brilhantes, mas positivamente é a brava Eliane Coelho quem se destaca. A
música difícil, que une leitmotives (motivos musicais que caracterizam um
personagem ou uma situação) e experiências atonais, é bem interpretada na
profusão de baixos e agudos que estruturam a narrativa, a cena e a musicalidade
em bom ritmo para o gênero e para a época da composição. A direção do premiado André
Heller-Lopes deixa ver equilibrado balanço das informações na encenação,
equilibrando o ritmo e o sustentando em positiva curva crescente. É verdade que,
na montagem atual, a “Dança dos Sete Véus”, cuja coreografia não se expressa firmemente, carece de força, complexidade e de
sensibilidade, mas não se pode esquecer que Strauss escreveu um epílogo
longuíssimo (após o ápice e depois do fim) de vinte minutos, em que se escuta o
lamento final de Salomé, defendido com galhardia pela meritosa equipe.
Heller-Lopes
também assina o cenário. O chão espelhado produz, com reflexos do belíssimo
desenho de luz de Fábio Retti, mas principalmente com a ostensiva presença de
luminárias art nouveau, várias sombras nas longas cortinas transparentes e
também no teto do Theatro Municipal. O efeito, plenamente relacionável com o
sopro das asas da morte, ajuda a construir o clima clássico e ao mesmo tempo soturno
que a história apresenta. A pedraria, a forte presença de cores, os tecidos com
brilho enegrecido nos figurinos de Marcelo Marques também auxiliam na
viabilização dos mesmos quadros. A composição de ternos e de óculos
contemporâneos com lungis pretos, misturados com as cadeiras Luis XV douradas,
evoluem para os figurinos mais vistosos de Herodes e principalmente para o
belíssimo vestido de Herodias, no auge do art nouveau da estética da produção.
Esse pastiche estético reproduz bem a troca do século XIX para XX, fazendo a
sua crítica.
“Salomé”
teve a sua primeira apresentação no Brasil em 1910 nesse mesmo Theatro
Municipal. “A viúva alegre” ainda demoraria 36 anos para chegar ao mesmo palco.
Vale a pena fazer essa viagem no tempo e assistir a essa produção primorosa,
levando ao cabo essas e outras reflexões possíveis e grande deleite.
*
Ficha técnica:
Música: Richard Strauss
Libreto: Hedwig Lachmann
Direção cênica e
cenografia: André Heller-Lopes
Assistentes de direção: Menelick
de Carvalho e Caetano Pimentel
Iluminação: Fabio Retti
Figurinos: Marcelo Marques
Regência: Silvio Viegas
No elenco:
Salomé: Eliane Coelho
(solista especialmente convidada), soprano
(dias 23 e 29)
Cristina Baggio, soprano
(dias 22, 24 e 27)
Jochanaan (João Batista): Licio
Bruno, baixo-barítono
Herodes: Paul McNamara, tenor
Herodiades: Carolina Faria,
mezzo-soprano
Narraboth: Ivan Jorgensen, tenorPajem – Lara Cavalcanti
Primeiro Judeu – Ossiandro Brito
Segundo Judeu – Geraldo Mathias
Terceiro Judeu – Weber Duarte
Quarto Judeu – Geilson Santos
Quinto Judeu e Capadócio – Patrick Oliveira
Primeiro Nazareno e Escravo – Luiz Furiati
Segundo Nazareno e Segundo Soldado – Homero Velho
Primeiro Soldado – Murilo Neves
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