quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Salomé (RJ)


Eliane Coelho e Lício Bruno em cena no Theatro Municipal

Foto: Leonardo Pergaminho



A brava Eliane Coelho

                “Salomé”, a nova produção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, marca os 150 anos do nascimento do alemão Richard Strauss (1864-1949). Montagem assinada por André Heller-Lopes, com regência de Silvio Viegas, a peça conta com a soprana Eliane Coelho (Salomé), o baixo-barítono Lício Bruno (João Batista), o tenor irlandês Paul McNamara (Herodes) e com a mezzo-soprana Carolina Faria (Herodias) nos papeis principais. O libreto, da poetisa Hedwig Lachman, é baseado na peça homônima de Oscar Wilde. Lançada em 1905 com muito sucesso, essa ópera é referencial por vários aspectos, muitos deles positivamente encontrados na produção em cartaz na Cinelândia.

                Três semanas depois de “Salomé” estrear em Dresden, na Alemanha, Viena apresentou ao mundo a opereta “A viúva alegre”, de Franz Lehár. O mês de dezembro daquele ano, assim, simbolizava um período marcante na história do teatro musical. De um lado, Strauss, um jovem de 39 anos, cujo pai havia falecido há poucos meses, ainda representava o erudito romantismo tardio, descendente de outro alemão, Richard Wagner. De outro, uma história popular ganhava notoriedade, pautas, dinheiro e fama.  Recuperando personagens bíblicos em uma situação narrativa que atingia o seio da burguesia, Strauss, ao lado de Wilde, valorizava a aristocracia, o classicismo e a erudição, levando a música, através da troca de séculos, para além dos moralismos e dos sentimentalismos melodramáticos. Morto em 1900, o irlandês Oscar Wilde escreveu “Salomé” em francês em 1891. A peça, censurada em vários países, incluindo a Inglaterra, era o seu ponto de vista sobre o que levou Salomé a pedir a cabeça de João Batista na corte da Galileia (ver Mt 14,1-11). Dez meses antes, João Batista havia sido preso por Herodes Antipas, líder da Galileia, porque, entre outras coisas, acusava o teatrarca de traição. Herodias, sobrinha e esposa de Filipe, havia abandonado o marido para viver com seu cunhado (e tio) Herodes, levando consigo sua filha Salomé. Superticioso, Herodes não queria matar o João Batista (primo de Jesus, que ainda não era conhecido), mas, embevecido pela beleza da enteada, jurou fazer qualquer coisa que ela pedisse se dançasse para ele. Na cena mais famosa da ópera, Salomé faz a sensual “Dança dos Sete Véus” e exige a cabeça do prisioneiro em uma bandeja de prata. Nas cenas iniciais, a personagem-título havia convencido um soldado (amante seu) de soltar o prisioneiro para que ela o visse. João Batista, nesse momento, havia ofendido seus brios, não permitindo que ela o tocasse e nem mesmo pousando sobre ela o olhar. Wilde e Strauss terminam a narrativa com a imagem macabra de Salomé beijando os lábios cadavéricos da cabeça decepada do condenado, dizendo que é mais difícil resolver o amor do que a morte. Em um ato só, contada em um só fôlego, a história une a tragédia e o romantismo naquilo que outro alemão, Hegel, definiu como o fim, o êxtase, da arte.

                No palco do Theatro Municipal, belos cantores e belos músicos narram a história em cem minutos com nenhum corte nas partituras. Lício Bruno e Paul MacNamara têm participações brilhantes, mas positivamente é a brava Eliane Coelho quem se destaca. A música difícil, que une leitmotives (motivos musicais que caracterizam um personagem ou uma situação) e experiências atonais, é bem interpretada na profusão de baixos e agudos que estruturam a narrativa, a cena e a musicalidade em bom ritmo para o gênero e para a época da composição. A direção do premiado André Heller-Lopes deixa ver equilibrado balanço das informações na encenação, equilibrando o ritmo e o sustentando em positiva curva crescente. É verdade que, na montagem atual, a “Dança dos Sete Véus”, cuja coreografia não se expressa firmemente, carece de força, complexidade e de sensibilidade, mas não se pode esquecer que Strauss escreveu um epílogo longuíssimo (após o ápice e depois do fim) de vinte minutos, em que se escuta o lamento final de Salomé, defendido com galhardia pela meritosa equipe.

                Heller-Lopes também assina o cenário. O chão espelhado produz, com reflexos do belíssimo desenho de luz de Fábio Retti, mas principalmente com a ostensiva presença de luminárias art nouveau, várias sombras nas longas cortinas transparentes e também no teto do Theatro Municipal. O efeito, plenamente relacionável com o sopro das asas da morte, ajuda a construir o clima clássico e ao mesmo tempo soturno que a história apresenta. A pedraria, a forte presença de cores, os tecidos com brilho enegrecido nos figurinos de Marcelo Marques também auxiliam na viabilização dos mesmos quadros. A composição de ternos e de óculos contemporâneos com lungis pretos, misturados com as cadeiras Luis XV douradas, evoluem para os figurinos mais vistosos de Herodes e principalmente para o belíssimo vestido de Herodias, no auge do art nouveau da estética da produção. Esse pastiche estético reproduz bem a troca do século XIX para XX, fazendo a sua crítica.

                “Salomé” teve a sua primeira apresentação no Brasil em 1910 nesse mesmo Theatro Municipal. “A viúva alegre” ainda demoraria 36 anos para chegar ao mesmo palco. Vale a pena fazer essa viagem no tempo e assistir a essa produção primorosa, levando ao cabo essas e outras reflexões possíveis e grande deleite.

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Ficha técnica:
Música: Richard Strauss
Libreto: Hedwig Lachmann
Direção cênica e cenografia: André Heller-Lopes
Assistentes de direção: Menelick de Carvalho e Caetano Pimentel
Iluminação: Fabio Retti
Figurinos: Marcelo Marques
Regência: Silvio Viegas

No elenco:
Salomé: Eliane Coelho (solista especialmente convidada), soprano
              (dias 23 e 29)
              Cristina Baggio, soprano
              (dias 22, 24 e 27)
Jochanaan (João Batista): Licio Bruno, baixo-barítono
Herodes: Paul McNamara, tenor
Herodiades: Carolina Faria, mezzo-soprano
Narraboth: Ivan Jorgensen, tenor
Pajem – Lara Cavalcanti
Primeiro Judeu – Ossiandro Brito 
Segundo Judeu – Geraldo Mathias
Terceiro Judeu – Weber Duarte
Quarto Judeu – Geilson Santos
Quinto Judeu e Capadócio – Patrick Oliveira
Primeiro Nazareno e Escravo – Luiz Furiati
Segundo Nazareno e Segundo Soldado – Homero Velho
Primeiro Soldado – Murilo Neves

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