sábado, 26 de abril de 2014

O estranho caso do cachorro morto (RJ)

Rafael Canedo e Thelmo Fernandes em bons trabalhos
Foto: divulgação

Sem direção

O maior problema da encenação de “O estranho caso do cachorro morto” é que não há marcas de uma direção que exiba uma concepção firme sobre o que se vê. Ao contrário, sai-se da Sala Marília Pêra, no Teatro Leblon, com a nítida impressão de cada ator está em cena fazendo o que acha que deve, se esforçando, mas sem uma visão da peça como um todo. Com direção assinada por Moacyr Goes, a peça foi a grande vencedora do último Laurence Olivier Awards, o grande prêmio do teatro inglês. Tem texto do premiado Simon Stephens a partir de livro escrito por Mark Haddon que fala menos sobre autismo e conta mais a história de um casal de pais que precisam aprender a lidar com um filho autista. Em cena, são positivos os trabalhos de interpretação de Rafael Canedo, como o filho Christopher, e de Thelmo Fernandes, como o pai Ed, mas apenas os seus infelizmente.

A história pode ser dividida em quatro partes. Na primeira, morre assassinado o cachorro da Sra. Shears (Carla Guidacci), crime esse que instiga o adolescente Christopher (Canedo) a descobrir o mistério. Apesar de proibido pelo pai (Fernandes), o jovem sai entrevistando as pessoas da vizinhança à cata de informações. Na segunda parte, o pai apreende um caderno vermelho do filho onde há anotações sobre as investigações, além de um diário. A relação conflituosa (e amorosa) do pai e do filho, cuja morte da mãe (Silvia Buarque) é recente, desvenda as especificidades do convívio com alguém autista enquanto exibe a importância da segurança na construção da identidade ao longo da difícil fase da adolescência. É quando se descobre que, na verdade, a mãe não morreu. Na terceira parte, Christopher embarca para Londres a fim de morar com a mãe e com o atual marido (Leon Góes). Vêm à luz aí o embate interno entre o ser mãe, o ser esposa e o ser mulher, tudo isso em choque com a realidade específica de Christopher. Por fim, há a volta para casa, o que não é necessariamente um retorno à situação inicial. Partes expostas, está evidente o quanto as curvas dramáticas do texto de Stephens são claras na dramaturgia embora inexistentes na direção de Goes.

Silvia Buarque (Mãe) apresenta o mesmo personagem durante toda a peça, sem nuances, sem pontos de mudança, sem crises e nem ápices, mas a mesma linearidade superficial do início ao fim. O mesmo se pode dizer do Sr. Shears (Leon Góes) e da Sra. Shears (Carla Guidacci), em péssimas atuações, porque sem marcas de verdade. Eduardo Rieche, Paulo Trajano, Fabiana Tolentino e Ricardo Gonçalves têm personagens que, nessa ausência de concepção de direção, são pouco além de figurantes dispensáveis. A questão mais problemática está na interpretação de Siobhan, por Sabrina Korgut: nem ao menos se sabe quem é essa personagem e o que ela faz se olharmos apenas para a montagem aqui em questão. Siobhan é um dos pontos altos do texto de Simon Stephens. Ocupando um lugar que fica entre a professora, a terapeuta e amiga, é através dessa personagem que o público se aproxima da obra, mantendo a consciência, sem se entregar totalmente à emoção. Stephens divide as falas dos personagens com ela em pontos específicos e com objetivos claros: ao dividir a dramaturgia com essas quebras de eixo lineares e relacionais, o autor sustenta a emoção e prende a atenção, atrasando o ápice eficientemente até o fim. Na versão de Moacyr Goes, Siobhan está muito mais para uma menina que quer ser a namorada de Chritopher, sem nem mesmo transparecer isso.

Ainda sobre os trabalhos de interpretação, Thelmo Fernandes e Rafael Canedo exibem excelentes trabalhos, porque também ambos constituem um núcleo encerrado em si próprio. Christopher (Canedo) é o protagonista e seu trabalho é realmente fechar-se em si ao construir personagem que se isola de parte do mundo por motivações da ordem da sua psicologia especial. Embora se relacione também com outros personagens, é com o Filho que o Ed (Thelmo Fernandes) mais convive, o que possibilita mais base segura para que o intérprete do Pai possa se apoiar ao dar vida ao personagem. Infelizmente, são essas as duas únicas bases seguras de “O estranho caso do cachorro morto”.

Um cão de madeira de um lado, um rato inexistente (os atores “fazem de conta” que o rato existe) de outro, um caixa eletrônico interpretado por uma atriz e, por fim, um cão de verdade marcam a bagunça conceitual da estética dessa produção. O cenário de Ana Santana e de Mônica Martins podem representar várias coisas, mas, ao mesmo tempo, nada, ficando pior ao conviver com o vídeo de Lucas Canavarro e de Renan Brandão. Explorando o lúdico e o realismo, o onírico e o racional, o contexto visual da produção não leva a história para lugar algum.

O texto de “O estranho caso do cachorro morto” é feliz em situar um caso específico e trata-lo como específico, levando para o geral a relação das pessoas não-autistas com as portadoras dessa característica. A versão brasileira desse espetáculo, no entanto, não acompanha os méritos do texto.

*

Ficha técnica:
Texto: Mark Haddon
Adaptação: Simon Stephens
Direção: Moacyr Goes
Elenco: Thelmo Fernandes, Sabrina Korgut, Silvia Buarque, Leon Góes, Rafael Canedo, Carla Guidacci, Eduardo Rieche, Ricardo Gonçalves, Paulo Trajano e Fabiana Tolentino
Cenário: Ana Santanna e Monica Martins
Figurinos: Joana Mendonça e Luiza Oliveira
Desenho de luz: Tomás Ribas
Direção musical: Ary Sperling / Trilha Sonora Original: Rafael Sperling
Direção de Produção: Moacyr Goes
Produção Executiva: Juliana Lago
Assistente de direção 1 : Matheus Senra
Assistente de Direção 2 e Produção: Fernanda Curi
Video Mapping: Lucas Canavarro e Renan Brandão

Um comentário:

  1. Gosto muito do livro que deu origem a peça. Agora, lendo a critica, fiquei em duvida sobre assisti-la, pois não gostaria de sair decepcionado do teatro.

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