terça-feira, 1 de abril de 2014

Humor (MG)

Marcos Coletta em cena
Foto: divulgação

Teatro da melhor qualidade

Mais do qualquer coisa, “Humor” é muito inteligente. De forma bastante rara, a nova produção do grupo mineiro Quatroloscinco – Teatro do Comum é sobre a incapacidade de qualquer linguagem de viabilizar um sentido em sua totalidade. Em outras palavras, a peça é uma metáfora para a situação de quando queremos falar algo e, no meio da fala, nos arrependemos, porque não há palavras que possam descrever bem o que desejamos. Com texto de Assis Benevenuto e de Marcos Coletta, a peça está em cartaz no teatro da Caixa Cultural, no centro do Rio.

Uma história dentro da história. Quatro personagens sem nome e sem forma (Marcos Coletta, Rejane Faria, Assis Benevenuto e Italo Laureano) tentam contar a historia de um homem (Marcos Coletta) que não fala, não se mexe, não reage há anos. Uma empregada (Rejane Faria) cuida de suas necessidades básicas, um médico (Assis Benevenuto) o visita com frequência e também um advogado (Italo Laureano) tenta administrar seus bens. O desafio inicial do espectador é estabelecer as pontes entre uma narrativa e outra e, enquanto está absorto nesse vai e vem de significação, é pego de surpresa por “Humor”, que cria, assim, bases semânticas para falar a que veio.

As teorias em torno do devir já estão balzaquianas, mas tão jovens como nunca. Nelas, os fatos que acontecem não podem ser vistos como desvinculados de uma situação que os antecede e os precede, nem tampouco das várias situações paralelas. O universo é, pois, muito mais complexo. “Humor” vai atrás dessas pistas, dessas marcas, dessas “pegadas” de significado que, no passado, ainda não significavam, mas fizeram sentido no além. Quatro personagens contam uma história, mas sabem que o ato de narrar aprisionará o sentido dentro de um universo formal: a oralidade é, por exemplo, um dispositivo, um meio regular de comunicação que tem regras e, por isso, nem sempre expressa o significado em sua potência ideal. Por isso, frequentemente, no meio das falas, esses personagens narradores confessam uns para os outros e todos para o público: “Não posso mais, não posso mais continuar!” Fica para diante dessas interrupções o mesmo que havia antes do início das sentenças: o sentido imanente, o desejo de algo em ser expresso e a insatisfação por sobre o que foi expresso ou sua forma. Nesse sentido, a oposição entre a vontade de acontecer na materialidade versus o prejuízo que esse acontecer causa consiste no conflito dramático que “Humor” viabiliza. 

São bastante positivos os trabalhos de interpretação, porque os dois níveis de narração são muito claros: o interpretativo (o homem apático, a empregada, o médico e o advogado) e o prosódico (os narradores). Os intérpretes mudam claramente as tensões de lugar, dando a ver figuras mais próximas e mais distantes do público, ambas com dicção clara, tempos bem usados, gestual limpo. A cenografia de Ed Andrade participa ativamente da construção do sentido, porque parece ter sido feita de objetos que já existiam além da peça e só foram rearticulados para o seu uso. A impressão de paredes de uma casa feita a partir de janelas velhas, cujos vidros estão boa parte quebrados, preenche o visual de um significado que em tudo tem a ver com a peça apresentada. Os móveis desse cenário e os figurinos de Mariana Blanco situam uma das histórias em um lugar do tempo mais antigo, o que auxilia o espectador a ler o contexto como algo que já se passou, o que também é positivo. A trilha sonora original de Lucas Yoganand age na mesma direção, enriquecendo a produção com boa dose de poesia, isto é, na via indireta do sentido.

A iluminação de Marina Arthuzzi é definitiva para “Humor”, espetáculo que teve orientação criativa de Rodrigo Campos. Na cena final, uma sequência longa e brilhante, vemos a peça “iluminar” lugares onde outrora estiveram objetos e pessoas, onde histórias se passaram ou histórias foram contadas. O que iria acontecer já aconteceu e não acontece mais e a poesia está em refletir sobre esse caminho de duas pontas difusas. Eis aqui teatro da melhor qualidade.

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Ficha técnica:
Direção e Atuação: Assis Benevenuto, Italo Laureano, Marcos Coletta, Rejane Faria
Texto: Assis Benevenuto e Marcos Coletta
Orientação criativa: Rodrigo Campos
Iluminação: Marina Arthuzzi
Cenografia: Ed Andrade
Cenotécnico: Nilson Santos
Assistente de Cenografia: Morgana Mafra
Figurinos: Mariana Blanco
Confecção de Figurino: Marcia Correa
Trilha Sonora Original: Lucas Yogananda
Workshop de Improvisação: Gustavo Miranda
Fotografia: Guto Muniz
Design Gráfico: Espaço Lampejo – Filipe Costa e Flora Lopes
Produção: Maria Mourão
Realização: Grupo Quatroloscinco - Teatro do Comum
Patrocínio: Caixa Econômica Federal e do Governo Federal

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