Os personagens de "Cidadela" |
O desafio do teatro surrealista
“Cidadela” é uma feliz produção do Coletivo Arvorá que investe no teatro surrealista como raramente se vê. Em sua dramaturgia, assinada por Diego de Angeli, parte-se do realismo, para subverte-lo, nega-lo e, então, investir na pura imagem. Ao longo de cem minutos, o espectador não sabe exatamente o que está vendo, quem são esses personagens, onde e quando vivem, o que exatamente querem. Em um mundo motivado pelas ações e reações, ansioso por uma lógica que possa dar conta do que mais parece irracional, o desafio do texto é enorme, por isso, meritoso. Ao dirigir o próprio texto, Angeli sabiamente fez vir dele o melhor: o carisma das cores que prenda a atenção ao quadro que não se entende. O espetáculo cumpriu a primeira temporada na Sede das Cias, na escadaria do Selaron, na Lapa, Rio de Janeiro.
Do realismo, “Cidadela” não foge da estrutura familiar e da certeza que esses personagens têm de que, se pararem, virarão árvores. Pai (Frederico Demarca), Mãe (Juliana Longuinho), Filho (Guilherme Hinz) e Filha (Juliana Linhares) compõem uma família de músicos de perambulam sem pausa. Sabe-se que o Pai morreu e que a Filha terá um(a) filho(a) (Jefferson Zelma), mas, assim como quem já foi continua vivo, quem ainda não nasceu já está presente. O fato de um dos personagens avistar um ou mais seres humanos pode modificar a vida do grupo, mas pode não. Uma cidade pode ser um ajuntamento de seres humanos, pode ser uma reunião de árvores também. Nesses últimos pontos, “Cidadela” subverte o realismo e, como se disse, investe no onírico em sua dramaturgia. Os diálogos não têm sempre uma lógica enunciativa, os sons das palavras segue o mesmo não-padrão positivamente. Em sua estrutura, a peça se mostra coesa e coerente.
Na encenação, a inexpressividade do elenco incomoda, mas amarra uma concepção que se mostra sóbria e firme. No momento em que almeja conceitualmente subverter a lógica realista, as reações devem desaparecer, privilegiando as ações. Dessa forma, os personagens agem não a partir de situações ou de outras ações, mas por impulsos da ordem de suas naturezas. Frederico Demarca tem um participação pequena, mas cheia de força. Juliana Longuinho traz traços firmes e sólidos e Juliana Linhares preenche “Cidadela” com graça e muito carisma. Sobre Linhares, há que se ressaltar a belíssima voz nos momentos de canto.
Os figurinos de Bruna Lobo e a iluminação de João Gioia e de Wagner Azevedo são o ponto alto de “Cidadela”. Coberto de variações do mesmo tema, o quadro final parece envolver o espectador em uma realidade corretamente paralela, que cita o mundo lá fora, mas para apresentar um escape a ele. Banhado pelos tons terra, o espectador é iluminado ora pela luz, ora pela escuridão em uma edição de cenas que torna o seu conteúdo ainda mais interessante e positivo.
A melhor obra surrealista é aquela que não é bela, justamente porque esse gênero artístico discute o papel da harmonia na tese hegeliana. Nesse sentido, “Cidadela” não é uma peça de entretenimento, ilustrativa, figurativa ou com uma narração tradicional. Dessa forma, os elogios aqui feitos são resultados de uma reflexão, mas mais ainda pela qualidade dos argumentos na sugestão desse olhar. Não há dúvidas de que, em tudo, houve uma minuciosa proposição. Parabéns.
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FICHA TÉCNICA
ELENCO: Frederico Demarca, Guilherme Hinz, Jefferson Zelma, Juliana Linhares e Juliana Longuinho
TEXTO E DIREÇÃO: Diego de Angeli
DIREÇÃO MUSICAL: Frederico Demarca
PREPARAÇÃO VOCAL: Juliana Linhares
TRILHA SONORA ORIGINAL: Frederico Demarca
PREPARAÇÃO CORPORAL: Juliana Longuinho
DIREÇÃO DE MOVIMENTO: Vanessa Garcia
ILUMINAÇÃO: João Gioia e Wagner Azevedo
FIGURINO: Bruna Lobo
CONCEPÇÃO ESPACIAL: Diego de Angeli
CONSULTORIA CENOGRÁFICA: Tomás Fage
CENOTÉCNICO: André dos Santos Salles
PROGRAMAÇÃO VISUAL: Cecilia Mascheroni
FOTOGRAFIAS: Clarice Lissovsky
COLABORAÇÃO ARTÍSTICA: Helena Maria Cosi e Rodrigo Carrijo
MARKETING DIGITAL: Jefferson Zelma
DIRETOR DE PRODUÇÃO: Guilherme Hinz
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Samia Oliveira
REALIZAÇÃO E IDEALIZAÇÃO: Coletivo Arvorá
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