A nova adaptação de "O idiota", de Dostoiévski |
Sobre a mudança de eixo
“Febril” é mais uma versão de “O idiota”, de Dostoiévski, que se apresenta no Brasil (seguida, principalmente, da versão de Cibele Forjaz e da de Eimuntas Nekrosius). A produção atual tem méritos em explorar um eixo diferente da narrativa do que o que foi escrito pelo romancista russo, o que justificaria o título diverso, mas apenas esse mérito. Se, na versão inicial, o Príncipe Míchkin é o protagonista (a partir de quem se vê o mundo), aqui a adaptação de Pedro Emanuel quer situar Nastácia Filíppovna como eixo. O desafio é insólito, pois todos os personagens só existem enquanto resultado de uma reação a Míchkin na obra original, ou seja, Fillípovna, como os demais, não têm forças dramatúrgicas que lhe garantam sozinha a existência. Há grandes trabalhos de Pedro Casarin como Gánia e de Julia Mendes como Fillíppovna, mas os demais são ou medianos ou ruins infelizmente. O espetáculo cumpriu temporada no Parque das Ruínas e é mais uma produção da Cia em Obra.
O contexto central da obra de Dostoiévski é a chegada de Míchkin (João Lucas Romero) que ficou por anos longe da Rússia, curando-se de epilepsia (a doença era chamada de idiotia no século XIX quando o romance foi escrito). De grande pureza e larga bondade, diante dele, todos os personagens deixarão ver seus aspectos negativos. Míchkin nada mais é, assim, que um catalisador, isto é, alguém que faz vir à luz o que há de pior nos outros. Fillípovna (Mendes) é uma mulher bonita que encanta os homens facilmente. Além de um primeiro (que é apenas citado na versão de Pedro Emanuel), dois homens brigam por ela: Rogójin (Zeca Richa) e Gánia (Casarin). Um é forte e másculo, o outro é franzino e ardiloso. Vencerá aquele que tiver mais dinheiro. O mesmo tipo de contraste existe nos personagens femininos. No exato oposto de Fillípovna, está Aglaya, não menos ambiciosa, mas aparentemente mais pura. No centro de tudo está Míchkin, odeiado e amado por todos. Ao eleger um personagem que não o protagonista original, caem por terra as oposições e a complexidade da obra de Dostoiévski. Para isso fazer sentido, exige-se a criação de uma história que contextualize Fillípovna e re-hierarquize todos os sentidos de “O idiota” a partir de novos parâmetros. Porque não dá cabo desse enorme desafio, “Febril” acaba por não ficar bem nem em Dostoiévski, nem em Pedro Emanuel.
Faltam rugas nos atores que não sejam maquiagens ou cabelos coloridos de branco. Zeca Richa (Rogójin), Rubi Schumacher (Varvara Ardaliónovna), Eduardo Parreira (General Iepantchin) e Ana Luiza Cunha (Generala Lisavieta Prokofievna) são mais nervosos do que profundos em seus trabalhos de interpretação, deixando a peça com um tom mais ilustrativo do que propriamente narrativo. Pedro Casarin e Julia Mendes, por outro lado, conseguem bons resultados, fazendo ver as indecisões no caráter de Gánia e a elegância de Fillípovna antes de qualquer outra coisa. João Lucas Romero e Paula Valente apresentam bons trabalhos, mas sem destaques.
“Febril” acontece em frente a uma instalação de Tomás Ribas que contribui como ponto de partida para a narrativa de “O idiota” muito além do vermelho “febril” de sua forma. Do ponto de vista do público, a moldura dentro da moldura dentro da moldura infinitamente situa o homem no interior de si mesmo conceitualmente, o que favorece a narrativa, pois esse é o lugar de onde o leitor vê o mundo do(a) protagonista. A peça tem também um ótimo uso da trilha sonora, essa composta por canções eslavas e russas, cujas sonoridades são positivamente contribuintes para a estrutura da narrativa cênica.
Esse é o terceiro espetáculo da Cia em Obra, grupo que, antes de qualquer outra coisa, tem o mérito de manter-se grupo e esse disposto a por seu trabalho a serviço da experimentação, da descoberta e da pesquisa. Merece atenção.
FICHA TÉCNICA
Direção e Adaptação: Pedro Emanuel
Supervisão de Direção: Fábio Ferreira
Elenco: Ana Luiza Cunha, Eduardo Parreira, João Lucas Romero, Julia Mendes, Mario Terra, Paula Valente, Pedro Casarin, Rubi Schumacher e Zeca Richa.
Banda ao Vivo: Pedrinhu Junqueira (guitarra), Gabriel Balleste (baixo), Silvan Galvão (percussão), Gui Stutz (trumpete) e Henry Schroy (contrabaixo e teclado).
Iluminação: João Gioia
Cenário: Carlos Augusto Campos
Instalação Cênica: Tomás Ribas
Figurino: Tiago Ribeiro
Composição Original das Músicas: Banda Irmãos Fiodorov
Direção Musical: Pedrinhu Junqueira
Direção de Movimento: Rafaela Amodeo
Maquiagem: Ludmila Rocha
Pesquisa do Autor: Marcos Aurélio Derizans
Consultoria de Música Tradicional Eslava: Pablo Emanuel
Assistência de Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Direção de Produção: Mariana Guimarães Nicolas e Pamela Côto
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Programação Visual: ZR Mosaico
Fotos: Chico Monjellos
Apoio: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura e Centro Cultural Municipal Parque das Ruínas
Produção: L7 Produções Artísticas
Realização: Cia Em Obra
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