"À sombra das chutarias imortais" se passa na Copa de 1958 |
Uma justa homenagem ao amor pelo futebol
“À sombra das chuteiras imortais”, de Henrique Tavares a partir de Nelson Rodrigues, chega aos palcos cariocas para falar de Copa do Mundo com a certeza adulta de que ela realmente acontecerá. Em paralelo a todos os problemas que o país vêm enfrentando por causa e apesar do maior evento esportivo do planeta, o povo quer a Copa, precisa da Copa, anseia pela Copa à revelia do que a pseudo-intelectualidade venha a dizer sobre o assunto. Na dramaturgia de Tavares, o prólogo é a narração do jogo final de 1950, em que o Brasil perdeu para o Uruguai, jogando no Maracanã. Por melhor que seja o currículo lattes, não há brasileiro que não escute aquele jogo e não se entristeça com o resultado. Daí veio a sanha de vencer em 54, na Suíça, e, depois, em 58, na Suécia. Em um tempo em que o jogo só chegava aqui dias depois e que os resultados vinham pelos jornais, a linguagem do narrador e do cronista empata com o resultado das partidas já conhecido. Se o futebol era uma arte, a narração e a crônica futebolística eram também poesia. “À sombra das chuteiras imortais”, em cartaz no Teatro do Sesi, no centro do Rio de Janeiro, é uma homenagem a isso. Uma bela homenagem ao futebol, uma das maiores paixões do brasileiro.
O texto é uma adaptação para teatro das crônicas de futebol de Nelson Rodrigues, tendo, como trama central, o conto “O grande dia de Otacílio e Odete”, além de trechos das crônicas “Complexo de vira-latas”, “O craque na capelinha” e “O mais belo futebol da Terra”. Na história, Otacílio (Gláucio Gomes) e Odete (Ingrid Conte) são recém casados quando começa a Copa de 1958. Antes da união, ele havia procurado uma cartomante que lhe dissera que ele seria traído por uma loira. Uma segunda consultora, tempos depois, lhe prevenira da traição por uma morena. Odete é morena e, assim, o casamento aconteceu com desconfianças, mas não só no que diz respeito ao enlace. No brilhantismo do texto rodrigueano, a honra de homem casado divide aqui espaço com a cabeça de torcedor brasileiro, pois, oito anos depois da Copa de 50, ninguém poderia ter certeza de que o Brasil venceria na Suécia. A notícia de que era traído chega nas mãos de Otacílio na véspera do jogo final. Qual verdade importa mais para esse homem: a traição da esposa ou a vitória na Copa? Sem medo de dar às palavras o brilho que elas merecem, a direção de Tavares impõe um ritmo lento e levemente irregular que estrutura a trama com potência e movimenta a atenção para o final positivamente. A cada nova cena, a dúvida sobre as duas questões vai se tornando a verdadeira protagonista e esse é o maior mérito do texto visto em cena.
Os atores dividem seus trabalhos de interpretação entre os personagens e os narradores. As quebras de um para o outro apresentam-se bastante marcadas no início e se mantêm assim até o final, o que indica uma concepção de direção que é bem articulada. A complexidade de Otacílio não se destaca felizmente da superficialidade dos demais personagens, esses joguetes narrativos de Nelson e de Tavares. A narrativa é, por isso, equilibrada. Vemos cada personagem em seu pequeno universo, entendemos a história e nos interessamos pelo final: têm-se aí marcas de uma história bem contada.
Há quem vá supor que o furor da vitória de 1958 tirou a atenção do Brasil das dívidas internacionais que Jucelino fazia para construir Brasília. Ou que contribuiu para a eleição de Jânio Quadros. Perversa ou só alienante, a Copa do Mundo une os brasileiros na imensidão do seu tamanho e na diversidade de suas preferências esportivas e de entretenimento. “À sombra das chuteiras imortais” tem o seu lugar garantido nas reflexões e nos aplausos do ano devidamente.
Ficha Técnica:
Textos de Nelson Rodrigues
Adaptação e Direção Henrique Tavares
Cenografia José Dias
Iluminação Aurélio de Simoni
Figurinos Patricia Muniz
Assistente de Direção Alfredo Boneff
Realização Janeiro Produções
Elenco:
Gláucio Gomes (Otacílio)
Ingrid Conte (Odete)
Anderson Cunha (Cunha)
Crica Rodrigues (Cartomante)
César Amorim (Tio e Homem da Capelinha)
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