sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Eu, que estou à espera (RJ)

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Foto: divulgação





Performance cheia de afeto!

“Eu, que estou à espera” é uma interessantíssima performance que, durante as duas últimas semanas de novembro, aconteceu na Comuna, restaurante/bar que fica em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. Idealizado por Anna Costa e Silva, o projeto se deu através de um convite da Casamata, a galeria de arte que fica dentro do estabelecimento. Ele consistia no seguinte: ao entrar no local, o visitante encontra um entre vários bilhetes espalhados. Nele há um texto, uma pequena mensagem particular escrita (não assinada) por performer e que é dirigida ao desconhecido que encontrá-la sem querer. Depois de lê-la, conforme as instruções contidas nela, deve-se procurar por seu autor que estaria, em lugar marcado, à sua espera. Catharina Caiado, Flora Diegues, Luciana Novak e Zé Azul foram os performers nessa primeira edição. Essa análise diz respeito à participação da proposta com Zé Azul. Tomara que o projeto retorne logo para mais pessoas poderem curti-lo pela primeira ou por várias outras vezes.

Critérios para análise dessa performance
O primeiro critério de análise de uma performance diz respeito ao modo como ela pode fugir do estabelecimento dele. Por performance, entre vários conceitos cabeludos, se entende o tipo de proposta cênica (a palavra “espetáculo” não é boa aqui!) em que o espectador não consegue reconhecer exatamente o que é ator e o que é personagem. Essa dúvida perpassa vários outros níveis da relação, como o que está previsto e o que é improvisação, como quando começa e quando termina, quais os limites, quais os interesses, como quais possibilidades. Ela mantém o jogo e o que contorna toda a reflexão que está por trás do modo como o teatro se espalha por todas as dimensões sociais e humanas além das artísticas vivas e também como, por outro lado, pode ainda o teatr permanecer essencial. 

Outro critério diz respeito ao jeito como a proposta se abre (ou pode se abrir) para todos os participantes. Há performances que só atendem ao interesse do seu realizador e ao seu ego (ou problemas com ele), permanecendo na reprodução da relação entre quem fala e quem escuta (quem manda e quem obedece) que o teatro tradicional faz muito bem. Há que se valorizar, porém, a performance em que não só o público não reconheça o limite entre o que é personagem e o que não é, mas aquela em que o performer também veja no público sua possibilidade de se tornar, ele próprio, o performer. Ou seja, são melhores, porque mais raras, as propostas em que a autoria seja compartilhada em um processo de alternância de papeis tal como acontece na vida.

Um outro terceiro critério, para se ficar em três, pode ser a conexão da proposta com seu entorno. De que modo ela se serve das contribuições semânticas do lugar onde ela acontece, do tempo em que ela se dá, da época em que é feita? De que maneira o projeto dialoga com as interrogações de sua contemporaneidade, essa um conceito subjetivo compartilhado por realizadores e por fruidores, ambos, como se disse no parágrafo anterior, misturados no meio do seu processo? As respostas a essas perguntas podem bem servir para analisar criticamente “Eu, que estou à espera”.

Zé Azul em excelente trabalho
Assim como o teatro não acabou com a chegada do cinema, o rádio com a chegada da televisão, o livro com a internet, os encontros reais continuarão existindo em tempos de “Black Mirror”. No entanto, talvez porque essas questões do mundo virtual e do outro andam muito acesas, é possível identificar que um bate papo cordial tem valores mais altos hoje em dia. Zé Azul manteve-se interessado, durante a proposta, em descobrir, em ouvir e em compartilhar histórias na troca de reflexões e de memórias que foram surgindo ora por seu próprio estímulo, ora por quem com ele conversava (no caso, eu). Essa disponibilidade teve a capacidade de preencher com afeto os males da sociedade brutal. Ela abre o coração, ressignifica os acontecimentos, estabelece novos pontos de vista e calibra a esperança. Ao longo do acontecimento, o encontro pareceu ser mais importante do que qualquer outra coisa, afastando a racionalidade do compromisso de modo que, por causa disso, talvez, os objetivos da proposta artística que aqui se analisa tenham sido plena e ricamente atingidos.

A lembrança de que se tratava de um arranjo estético previamente pensado não retirou do momento sua capacidade dela se redefinir ao longo da realização. Em outras palavras, apesar de contornos previstos, o andamento da proposta se manteve livre como uma zona rica de potencialidades. Sem hora para terminar, o contexto se estruturou a partir de si próprio, o que, em reflexão posterior, alerta para os méritos do conjunto. Enquanto público e performer se misturam, e se atravessam, a obra acontece mais do que propriamente se dá a ver. E isso é muito positivo em termos de análise.

Por fim, “Eu, que estou à espera” parece ter nascido de questionamentos contemporâneos, mas também visivelmente se volta para eles: o aqui, o agora e o hoje no todo de sua complexidade. A performance acontece em um bar, ou na rua em frente a ele, em lugar não propriamente teatral e que está impregnado por um sentido de relaxamento, de conforto e de prazer que é livre e despreocupado. Ela surge no fim da tarde, início da noite, quando a abertura para a alegria talvez seja maior entre os frequentadores. E se dá em um momento de vozes turvas, essas ofuscadas muitas vezes pela necessidade de se auto-afirmar através de um avatar em redes sociais virtuais, de se justificar e de se manter relações diferentes através delas nas quais o encontro atual ainda vale a pena. Tudo isso, mais uma vez, chama a atenção para os méritos do trabalho.

Foi ótimo encontrar uma proposta assim na agenda carioca! Que venham novas oportunidades!

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Ficha técnica:
Idealização: Anna Costa e Silva
Performers: Catharina Caiado, Flora Diegues, Luciana Novak e Zé Azul

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