quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Amargo Fruto - A vida de Billie Holiday (RJ)


Foto: divulgação

Milton Filho, Lilian Valeska e Vilma Mello


Mais outro musical biográfico

“Amargo fruto – A vida de Billie Holiday” é mais outro musical biográfico com os mesmos problemas tantas vezes descritos. Ao longo de um par de horas, uma sucessão monótona de fatos que começam pelo nascimento da homenageada e terminam com sua morte são relatados enquanto as canções de seu repertório vão sendo apresentadas. Como aspectos positivos, nessa produção, há os belíssimos figurinos de Marcelo Marques e a direção musical de Marcelo Alonso Neves. A iluminação de Paulo César Medeiros e a interpretação de Vilma Mello ficam em excelente destaque. Lilian Valeska dá corpo ao jeito peculiar de Billie Holiday com méritos, mas tem participação como atriz pouco relevante. Como um todo, o espetáculo dirigido por Ticiana Studart, que está em cartaz no congelante Teatro Carlos Gomes até o próximo domingo, 27 de setembro, perde várias oportunidades infelizmente, mas vale a pena ser visto pelo seu bom gosto musical.

Texto confirma o mito, mas desaparece com o lado humano de Billie Holiday
Em termos de dramaturgia, duas entre várias oportunidades são perdidas por Jau Sant’Angelo e por Ticiana Studard, autores desse musical. A primeira delas diz respeito à motivação. Billie Holiday (1915-1959) foi uma cantora americana bastante importante para a consolidação do jazz como fenômeno da música mundial. Ao investir pura e superficialmente no relato biográfico, “Amargo fruto” abre mão da chance de se utilizar do teatro como arte capaz de construir símbolos coletivamente. Cena após cena, a dramaturgia particulariza a personagem – já célebre antes da peça – ao invés de aproximá-la do público por meio daquilo que eles possam ter em comum. Dona de um talento natural já explorado desde criança, Lady Day foi vítima de vários preconceitos: nasceu negra, filha de pais adolescentes que nunca foram casados, conviveu com a prostituição e com as drogas desde pequena, atravessou a Grande Depressão americana e fez sucesso em um tempo em que não havia a valorização dos direitos autorais. O espetáculo, no entanto, embora cite essas questões, não faz do seu próprio universo motivo para reflexão nem sobre preconceito, nem sobre qualquer dentre os vários temas possíveis ali com os quais qualquer um pode se identificar. A peça, assim, paira negativamente como uma wikipédica celebração vazia de significado.

A segunda questão tem a ver com a pesquisa. Na cena de abertura, Billie Holiday (Lilian Valeska) surge no palco do Carnegie Hall, no fim de 1956, para um dos últimos de seus grandes shows. Dois meses antes, havia sido publicada uma autobiografia (coescrita por William Dufty), chamada “Lady sings the blues” em resposta aos boatos que a mídia incansavelmente publicava sobre ela. Com inteligência, a dramaturgia de “Amargo fruto” começa lançando o contraponto entre o que Lady Day oficialmente narra no livro e a verdade sobre sua vida, que foi tema do documentário-homenagem de mesmo título dirigido por Sidney Furie e lançado em 1972. Assim, o interessante jogo de “verdades”, que poderia evoluir e dar a ver uma visão ainda mais humana sobre o mito, é abandonado em favor da versão histórica. A voz de Billie desaparece infelizmente.

Lilian Valeska canta bem, mas Vilma Mello está brilhante
Quando cantava, Billie Holiday, assim como Piaf por exemplo, quase não se mexia e suas expressões faciais eram bastante limitadas. Lilian Valeska, como a cantora que ela interpreta, oferece no palco sua excelente potência e afinação vocal e representa com magnitude a complexidade do timbre carregado de Lady Day. Aqui como lá, as canções conseguem lindamente dar a ver a dor da homenageada, essa sem dúvida a maior fonte de beleza desse repertório. O problema, no que diz respeito à interpretação, é a inexpressividade de Valeska nas cenas em que não se canta. Começando no início dos anos 30 e indo até o fim da década de 50, a atriz apresenta as mesmas ralas intenções através dos inúmeros momentos retratados no palco. Milton Filho, várias vezes elogiado aqui, está apático estranhamente em todos os seus vários personagens. Em exata oposição, Vilma Mello, mais uma vez brilhante, atribui graça até mesmo às falas apenas informativas, sendo, em termos teatrais, a única no elenco capaz de garantir o jogo.

O figurino de Marcelo Marques é uma obra de arte em separado. Com óbvio maior destaque para os vestidos da personagem-título, há beleza e refinamento em todas as peças. O cenário de Aurora dos Campos é apresentado de forma brilhante pelo desenho de luz de Paulo César Medeiros. É de se destacar o modo como a iluminação recorta Billie Holiday, valoriza as sombras, separa o ambiente, opina sobre as cenas, fazendo evoluir a narrativa. A direção musical de Marcelo Alonso Neves, como de costume, garante que o som brote do palco e atinja o público sem falhas, mas com as sutilezas capazes de anunciar ampla gama de cores nas melodias e também nos diálogos mais perfeitos. Os problemas e os méritos aqui levantados de “Amargo fruto” dão conta da avaliação do trabalho de Ticiana Studart como diretora geral nessa montagem.

O esgotamento do gênero
Sofre o teatro enquanto arte nesse esgotamento cada vez mais comentado do gênero musical biográfico no Rio de Janeiro. A repetição dos mesmos problemas são sinais de que a investigação estagnou, tendo sido substituída pelo objetivo esquisito de oferecer ao público aquilo que a internet já faz. Estão na rede, afinal de contas, a biografia de todos os artistas e eles próprios cantando suas próprias canções. É preciso refletir em que medida as produções teatrais podem ser únicas, como é, aliás, o teatro. Viva Billie Holiday!

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Ficha técnica:
Texto: Jau Sant’Angelo e Ticiana Studart
Direção: Ticiana Studart
Direção Musical e Arranjos: Marcelo Alonso Neves
Elenco: Lilian Valeska, Milton Filho e Vilma Mello
Músicos: Berval Morais (baixo acústico), Emile Saubole (bateria), Gabriel Gabriel (saxofone) e Rodrigo Marsillac (piano)
Iluminação: Paulo César Medeiros
Cenografia: Aurora dos Campos
Figurino: Marcelo Marques
Desenho de som: Branco Ferreira
Visagismo: Ernane Pinho
Preparação Vocal: Mona Vilardo
Direção de Movimento: Sueli Guerra
Preparadora de Língua Inglesa: Alma Thomas
Programação Visual: Clara Melliande
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Direção de Produção: Maria Inês Vale
Coordenação Geral: Maria Vitória Furtado
Idealização: Jau Sant’Angelo
Realização: Vitória Produções