terça-feira, 25 de março de 2014

A bala na agulha (SP)

Eduardo Semerjian em cena
Foto: divulgação

Em tempos de Caio Castro, eis aqui uma reflexão imperdível

A produção paulista “A bala na agulha” é uma grata participação na programação do teatro carioca. A partir de texto de Nanna de Castro, a peça dirigida por Otávio Martins situa uma discussão sobre o fazer teatral que, embora parta da relação profissional entre atores, chega em uma reflexão sobre as expectativas do homem em qualquer tempo sobre seu trabalho seja ele qual for. O excelente desenho de iluminação de Pedro Garrafa, ao lado das interpretações sólidas de Eduardo Semerjian, de Denise Del Vecchio e de Alexandre Slaviero definem esse espetáculo como uma das peças imperdíveis da temporada.

Na história, Chico Valente (Semerjian) e Cadu (Slaviero) dividem o palco em “Esperando Godot”, espetáculo produzido pela atriz Célia de Castro (Del Vecchio). O primeiro é um ator experiente da cena teatral, embora sem reconhecimento e quase sempre sem trabalho nos últimos tempos. O segundo é um jovem galã da televisão, atualmente bastante famoso por sua participação na novela, mas sem formação em teatro em contraste com seus “gordos” cachês. Em uma sessão, Valente aprisiona a equipe em seu minúsculo camarim, tendo como cúmplice o contrarregra Éden. Seu objetivo é simples: com arma em punho, ele quer jogar um tipo de jogo de humilhação com o colega mais jovem. O embate é interrompido por Célia que, para a surpresa de ambos, começa a participar da situação a que o público do teatro, o real e o fictício, assiste. A beleza da dramaturgia está em envolver trechos referenciais de textos célebres (Beckett, Ibsen, Tchekhov, ...) em uma estrutura que se modifica, se aprofunda, se reinventa a cada nova cena para além do previsível jogo de poder. A curva dramática é ascendente, situando os três personagens em uma trama complexa, inteligente, sensível e muito perspicaz. 

Todos os elementos de “A bala na agulha” se movimentam e fazem caminhar uma estrutura narrativa que é potente, bela e significativa. Enquanto expõem o outro, os personagens se expõem e a direção de Otávio Martins faz acontecer momentos bons e excelentes. Com ótimo uso dos tempos e da dicção, das expressões e dos tons, dos gestos e dos movimentos, o melhor de Semerjian está em interpretar Didi de forma emocionada e consequentemente ruim. O resultado disso é que fica evidente que o personagem Cadu aprendeu um pouco sobre a profissão de ator durante o desenrolar do jogo em que se vê envolvido. Del Vecchio e Slaviero, cujos personagens são menos contemplados pela dramaturgia, apresentam trabalhos que ganham pela sutileza.

O cenário de Claudio Solferini e a iluminação de Pedro Garrafa compõem um quadro de beleza singular. O balanço embaixo do foco afinado da cena inicial expressa com galhardia a efemeridade do trabalho do ator teatral. Os galhos secos do clássico de Beckett fazem boa articulação com a espera de Godot que, nesse caso, pode ser o reconhecimento que Chico Valente espera para si. A trilha sonora assinada pela direção, com Bizet, Strauss e outros, fazem referência a outras obras, concordando com o texto de Nanna de Castro positivamente.

Para longe do superficial encontro entre um ator experiente que aprende o que acha que já sabe com um jovem ator, “A bala na agulha” coloca em debate as expectativas versus a frustração. Fica para a contemporaneidade o pensamento por sobre o valor que damos aos acontecimentos da vida. Em tempos de Caio Castro, eis aqui uma reflexão imperdível.

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Ficha técnica:
Texto: Nanna de Castro
Direção: Otávio Martins
Elenco: Eduardo Semerjian, Denise Del Vecchio, Alexandre Slaviero e Júlio Oliveira
Assistente de direção: Pedro Garrafa e Beto de Faria
Desenho de luz: Pedro Garrafa
Trilha sonora: Otávio Martins
Figurino: Marichelene Artsevisks
Cenário: Claudio Solferini
Direção de produção: Will Sampaio
Idealização: Applaud Produções

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