Foto: divulgação
Sem vencer o desafio de Corneille
Escrito por Pierre Corneille (1606-1684), o texto de “A ilusão cômica” é uma grande homenagem ao teatro e, também, um desafio. Em sua estrutura dramática, é possível encontrar características do teatro barroco (o misticismo) e do teatro clássico (o apego à morte), havendo marcas que aproximam algumas cenas do que viria a ser a Commedia dell’Arte e outras que remetem à tragédia e à tragicomédia, o que faz de “A ilusão cômica” um texto difícil de ser lido, pois o leitor desavisado se vê pulando de um gênero a outro ao longo dos cinco atos. O diretor Márcio Aurélio e a Cia. Razões Inversas tem, entre alguns méritos, o de montá-lo, mas não chega a vencê-lo infelizmente.
“A ilusão cômica” é a história de um pai (Pridamante/Clóvis Gonçalves) que procura um amigo (Dorante/Gonzaga Pedrosa) para que esse o ajude a descobrir o paradeiro do seu filho desaparecido (Clindor/Paulo Marcello). Uma espécie de mago (Alcandro/Joca Andreazza) informa onde ele está, assegurando ao pai de que o filho está bem e que, através da magia, é possível vê-lo. Vê-se, então, o filho servindo como servo de um homem fleumático (Matamouros/Andreazza), pretendente de uma rica donzela (Isabel/Maria Stella Tobar) que, por sua vez, também é perseguida por um outro homem (Adastro/Julio Machado). Na evolução da narrativa, fica-se sabendo que, o ambicioso filho está dividido entre o dinheiro da rica donzela, o amor da sua criada (Lisa/Lavínia Pannunzio) e o poder da mulher do príncipe (Rosina/Pannunzio), tudo isso lido ou visto apenas pela retórica dos personagens em cena. Como bem previa os preceitos aristotélicos, que, ao longo das décadas que se seguiram, o próprio Corneille repetidamente foi contestar, as ações são representadas, descritas em cena e quase nunca reproduzidas. Como na farsa, os atores permanecem cena, interpretando em um tablado sob a luz, assistindo à peça de forma discreta. Tudo isso, principalmente quando em uma só obra, aumenta as dificuldades de pô-la em cena.
Trata-se de um teatro dentro de um teatro uma vez em que a plateia assiste a outra plateia que assiste a uma peça, sendo essa nuance uma chave fundamental para compreender a proposta de Corneille, considerado o pai da tragédia francesa, também autor do mesmo dos clássicos “El Cid” e “Horace”. Ao dirigir o espetáculo, Márcio Aurélio lança mão, de forma positiva, de três ótimos trabalhos de interpretação (Adreazza, Pannunzio e Machado, todos apresentando uma dicção perfeita, as intenções claras em pausas bem postas, além de expressões corporais vivas e inteligentes), um eficiente desenho de iluminação (Marcio Aurélio) e um vibrante acompanhamento sonoplástico (Daniel Maia, nos movimentos do personagem Matamouro). Por outro lado, em sentido negativo, seu espetáculo apresenta uma evolução rítmica bastante emperrada, outros dois trabalhos de interpretação ruins (Pedrosa e Marcello, sem verdade, marcas visíveis, corpos e expressões faciais tensas) e figurinos que em nada contribuem para a fruição artística (Marcio Aurélio e André Cortez, roupas modernas em detalhes em renda, quase todos pretos, cinzas ou brancos).
“A ilusão cômica” exige da encenação uma amarrada construção da própria linguagem, porque sua evolução depende da quebra dos próprios paradigmas. A cena pastoral de abertura dará lugar, nesse sentido, à Commedia dell’Arte e, assim por diante, até se chegar à tragicomédia. A concepção de Aurelio se mostra sutil demais, de forma que há interpretações realistas (psicológicas) e que não fazem ver as quebras que poderiam produzir os solavancos mais propícios para o texto. O resultado final, que não é de todo ruim, deixa ver um trabalho de interpretação desequilibrado e um ritmo constante que é prejudicial.
Em cartaz no CCBB/Rio, o espetáculo marca os 21 anos da companhia paulista e celebra o teatro fazendo uma homenagem a ele. Pierre Corneille tinha 29 anos quando escreveu “A ilusão cômica” em 1636. Hoje, há a possibilidade de assistir a um novo olhar sobre o texto escrito há quase quatro séculos.
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Ficha Técnica
Direção: Marcio Aurelio
Tradução e adaptação: Valderez Cardoso Gomes
Elenco: Paulo Marcello, Joca Andreazza, Lavínia Pannunzio, Maria Stella Tobar, Clóvis Gonçalves, Gonzaga Pedrosa, Julio Machado, Gabriel Stippe e André Tristão
Cenários: André Cortez
Figurinos: Marcio Aurelio, André Cortez e Lígia Pereira
Iluminação: Marcio Aurelio
Trilha sonora: Daniel Maia
Direção de produção: Paulo Marcello
Produção Executiva: Renata Araujo
Patrocínio: Banco do Brasil e Eletrobrás
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