quinta-feira, 8 de março de 2012

Modéstia (RJ)

Foto: Ana Alexandrino


Bel Garcia e Gilberto Gawronski


Quando a moldura é mais importante que o quadro 

“Modéstia” é o espetáculo dirigido por Pedro Brício a partir do experimento dramatúrgico “La modestia”, escrito em 1998, pelo argentino Rafael Spregelburd (1970). O sucesso em várias capitais do mundo pode se justificar pelas propostas que motivaram a escrita da trama: a) atualizar para o teatro um dos sete pecados capitais contemporâneos (“La modestia” faz parte de uma heptologia inspirada pela pintura “A roda dos pecados capitais”, de Hieronymus Bosch, precedido por “La inapetencia” e “La extravagancia”, e seguido por “La frivolidad”, “La crueldad”, “La exageración” e “La estupidez”.); e b) através da linguagem cênica, discutir a questão da construção do sentido pela justaposição de objetos diferentes.

“Modéstia” apresenta duas histórias em 18 cenas, 9 para cada uma: na primeira, em Trieste, no início do século XX, um escritor sofre de tuberculose e é convencido pela esposa a trocar os direitos autorais de uma novela escrita por seu falecido sogro por tratamento médico. Um médico, que odeia a profissão, é quem propõe o acordo sem saber que, na verdade, o verdadeiro autor morreu sem deixar o texto finalizado. Doente, o escritor sofre ainda mais por não se sentir tão talentoso quanto gostariam que ele fosse. 

Na segunda história, em Buenos Aires, na época contemporânea, um advogado casado com uma mulher fascinada por seus vizinhos coreanos, se vê às voltas com sua vizinha e cliente, que quer se divorciar do marido, também amigo do advogado. Um jovem rapaz, amigo do advogado, aparece, e, de forma bem pouco clara, se envolve com a trama.

Nas palavras de Pedro Brício: “Montar esse quebra-cabeça é a aventura e o desafio para o espectador, mas um aviso: talvez, faltem algumas peças, e, talvez, as peças sejam de quebra-cabeças diferentes... [...] É uma peça sobre fronteiras: geográficas, de línguas, de raças, de blocos de apartamento, de linguagens, de gêneros teatrais. Uma peça sobre imigração, sobre estrangeiros, e de como podemos nos sentir estrangeiros dentro de nossa própria cidade – ou de nossa própria casa.”

Enfim, sendo sobre tantas coisas, “Modéstia” não passa ilesa ao perigo de ser sobre nada, a não ser um exercício experimental de linguagem: colagem de cenas desconexas, construção de cenas internamente também desconexas, justaposição de personagens sem clareza e muita confusão com ares de falsa contemporaneidade. 

Isabel Cavalcanti e Bel Garcia são as responsáveis pelos melhores momentos da peça
Boa parte dos méritos da produção são de Pedro Brício: o bom trabalho do elenco, a interessante trilha sonora e o afinado trabalho de iluminação. É visível, em Fernando Alves Pinto, a troca de personagens: numa história, ele é o doente escritor; noutra, ele é o jovem perdido (?). Uma vez que é cerne para a montagem a brusca modificação, reproduzindo o efeito do zapping, a mudança de tonos é fundamental. Por isso, seu trabalho em cena pode e deve ser elogiado.

Em Gilberto Gawronski, a identificação das mudanças não é tão fácil e é possível pensar que isso se dá em função dos personagens que lhe foram indicados: o médico na primeira história, o advogado na segunda. Mesmo assim, mudanças sutis de voz, um preciosismo do trabalho de interpretação, não deixam o público se perder.

Isabel Cavalcanti (mulher do escritor/mulher do advogado) e Bel Garcia (mulher do médico/cliente) são as responsáveis pelos melhores momentos de “Modéstia”. O peso do drama realista a la Tchekhov em paralelo ao vaudeville francês deixa ver nelas grandes trabalhos de interpretação: os diálogos têm força quando precisam ter e são leves quando precisam ser. Lentidão versus agilidade, introspecção versus comicidade, em todos esses elementos, o trabalho de ambas é admirável. 

Valorosas contribuições da iluminação de Tomás Ribas e da trilha sonora original de Domenico Lancellotti
Com dois ambientes, o cenário de Bia Junqueira não vence o desafio de ser “comum de dois”. Todo em madeira, incluindo as mesas e cadeiras, o sofá bege, as janelas sem cortina e as prateleiras, em nada ele lembra um frio cenário europeu do início século passado, embora seja adequado às cenas da história contemporânea. Os tons escolhidos, além disso, se perdem em meio aos escolhidos por Antônio Guedes ao definir a palheta de cores dos figurinos. De amarelo a verde, passando pelo bege, tudo se mistura prejudicialmente. Assim, toda a responsabilidade visual das mudanças essenciais à dramaturgia cênica pairam sobre as valorosas contribuições da iluminação de Tomás Ribas e da trilha sonora original de Domenico Lancellotti. Com esforço, as mudanças de luz e os movimentos musicais diversos garantem o apoio que o elenco e a direção necessitam para viabializar as histórias e, principalmente, a mudança delas. 

Mais importante do que as histórias, a alternância entre elas é o que deve observar o espectador de “Modéstia”. Embora a análise reconheça os méritos do quadro é impossível não dizer que, nesse caso, valorizar a moldura é fundamental. Infelizmente. 

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Ficha Técnica
Texto: Rafael Spregelburd
Tradução: Pedro Brício, Isabel Cavalcanti e Letícia Isnard
Direção: Pedro Brício
Elenco: Bel Garcia, Fernando Alves Pinto, Gilberto Gawronski e Isabel Cavalcanti
Iluminação: Tomás Ribas
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: Antonio Guedes
Direção de movimento: Cristina Moura
Trilha Sonora Original: Domenico Lancellotti
Fotos: Ana Alexandrino
Produção executiva: Arilson Lucas e Lia Sarno
Direção de produção: Carla Mullulo
Administração: Carla Mullulo
Apoio: Centro Cultural dos Correios
Patrocínio: Ministério da Cultura, Correios, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Cultura (FATE)