Uma linda visão
A inteligência de um encenador está quando o que é dito e a forma como o que é dito é dito se casam. “A primeira vista” (A Beautiful View”), escrito em 2006 pelo canadense Daniel MacIvor, ganha a direção de Enrique Diaz num belíssimo exemplo dessa inteligência. Os personagens de MacIvor são fluídos, são livres, habitam um mundo onde as barreiras são inconvenientes, estranhas, deslocadas. Sendo algo, esse é o conteúdo. E a forma? MacIvor não começa, nem termina as cenas de um jeito claro. As palavras se perdem no meio das frases, os encontros e os desencontros se misturam, os assuntos nascem e morrem sem que o leitor (estamos falando do texto) perceba, as emoções se confundem. Por sua vez, Diaz opta por manter o palco limpo (estamos falando da peça) com poucos recursos em cena e dirige as interpretações das atrizes no sentido de estarem tão próximas do real além da narrativa que o limite entre teatro e não-teatro parece não existir. O resultado é a construção de uma dramaturgia cênica intimista, acolhedora, humana. Estar na plateia de “A primeira vista” é como simplesmente ouvir duas amigas contarem a sua história. Você as conhece, logo não precisa ouvir seus nomes. Elas conhecem você, logo não precisam trocar de roupas para te receber. Estamos todos em um local amigável, logo sentir-se à vontade é conseqüência.
Duas mulheres, delicadamente interpretadas por Drica Moraes e Mariana Lima, se conhecem em uma loja de artigos para camping. Reencontram-se casualmente depois em um show. Um dia, uma noite, elas ficam juntas. Uma pensa que a outra é lésbica, sem que nenhuma das duas saiba que, para outra assim como para si, aquela foi a única experiência sexual com uma pessoa do mesmo sexo que teve. A vida segue e novos encontros entre as duas acontecem. O ponto de partida de MacIvor é um lugar no futuro em que ambas lembram o passado, tentando unir as peças, buscando, talvez, algum sentido para a vida que, de alguma forma, compartilharam. O ponto de partida de Diaz é apagar qualquer obstáculo que impeça que elas se encontrem e, sobretudo, que o público as encontrem.
Metateatro, ator rapsodo, stand-up comedy com história, indietheater… Teoricamente, há vários conceitos confortáveis a partir dos quais é possível analisar “A primeira vista”. De uma forma geral, a consciência de que estamos num teatro em que duas atrizes interpretam duas personagens é mantida pelo visível esforço no apagamento das marcas que redundem essas noções. Enrique Diaz que, nos mesmos moldes, dirigiu o sucesso “In On It” (do mesmo Daniel MacIvor), mantém o que é imprescindível para o efeito de espetacularidade acontecer: um perfeito desenho de luz, esse assinado não menos por alguém como Maneco Quinderé, cujo ponto alto é o black-out reflexivo no meio da peça, e uma sonoplastia/trilha sonora criada, escolhida (Fabiano Krieger e Lucas Marcier), operada (Lucas Marcier) e interpretada (Moraes e Lima) de forma excelente nos mínimos detalhes. Pontuais, seguros, ricos: os usos da iluminação e da trilha sonora não são ilustrativos, mas informacionais. As escolhas, assim como a opção por figurinos simples (Antônio Medeiros), mas não menos interessantes, expressam a concepção como um todo, definem o espetáculo como uma estrutura circular e, talvez, por isso, confortável, palatável, agradabilíssima.
Ainda que os focos caiam sobre Drica Moares que, com a saúde recuperada, volta aos palcos, não é possível dizer que ela apresenta um trabalho melhor que Mariana Lima. Ambas estão igualmente ótimas em cenas: exibem um discurso dito aos solavancos, com movimentos dispersos e palavras cortadas pela metade. Tudo que o que poderia parecer ruim, aqui é excelente porque perfeitamente coerente com o texto e com a concepção. Em momentos determinados, gestos disciplinados em giros certeiros, pausas bem marcadas, entonações bem dirigidas. A personagem citada Sasha, o camping, o medo do urso, a visão da cachoeira ganham importância, fazem sentido, são marcas de coesão. E só são porque o devido valor lhes foram dados.
“A primeira vista” corta de uma forma muito sutil, enquanto nos oferece “uma bonita visão”. O passado, no seu lugar idealizado, é humanamente mais bonito. Quanto à tona, ele nos pergunta: “Por que estou aqui? O que farão comigo agora vocês que me despertaram?” Então, vem a catarse, o choro, a reflexão e o aplauso. Aquele do tipo grato, sincero, orgulhoso, honrado de compartilhar com elas (?) as suas histórias recém contadas.
*
Ficha técnica:
Texto: Daniel MacIvor
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Drica Moraes e Mariana Lima
Cenografia: Marcos Chaves
Figurinos: Antônio Medeiros
Iluminação: Maneco Quinderé
Música: Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Tradução: Daniele Ávila
Assistência de direção: Keli Freitas
Preparação corporal: Cristina Moura
Técnica Alexander: Valéria Campos
Visagismo: Ricardo Moreno
Assessoria de Imprensa: Factoria Comunicação
Projeto gráfico e ilustrações: Olivia Ferreira e Pedro Garavaglia / Radiográfico
Conteúdo Web: Janeiro Conteúdo
Fotografia: Leonardo Aversa, Enrique Diaz e Nil Caniné
Diretor de cena: Márcia Machado
Assistente de figurino: Victor Saraiva
Cenotécnico: Luís Antônio Camarão
Produção de cenário: Sérgio Martins
Assistente de produção: Ailime Cortat
Operação de luz: Ana Luiza de Simoni
Operação de som: Lucas Marcier
Produção Executiva: Nil Caniné
Direção de Produção: Sérgio Martins
Realização: Machenka Produções Artísticas
Duas mulheres, delicadamente interpretadas por Drica Moraes e Mariana Lima, se conhecem em uma loja de artigos para camping. Reencontram-se casualmente depois em um show. Um dia, uma noite, elas ficam juntas. Uma pensa que a outra é lésbica, sem que nenhuma das duas saiba que, para outra assim como para si, aquela foi a única experiência sexual com uma pessoa do mesmo sexo que teve. A vida segue e novos encontros entre as duas acontecem. O ponto de partida de MacIvor é um lugar no futuro em que ambas lembram o passado, tentando unir as peças, buscando, talvez, algum sentido para a vida que, de alguma forma, compartilharam. O ponto de partida de Diaz é apagar qualquer obstáculo que impeça que elas se encontrem e, sobretudo, que o público as encontrem.
Metateatro, ator rapsodo, stand-up comedy com história, indietheater… Teoricamente, há vários conceitos confortáveis a partir dos quais é possível analisar “A primeira vista”. De uma forma geral, a consciência de que estamos num teatro em que duas atrizes interpretam duas personagens é mantida pelo visível esforço no apagamento das marcas que redundem essas noções. Enrique Diaz que, nos mesmos moldes, dirigiu o sucesso “In On It” (do mesmo Daniel MacIvor), mantém o que é imprescindível para o efeito de espetacularidade acontecer: um perfeito desenho de luz, esse assinado não menos por alguém como Maneco Quinderé, cujo ponto alto é o black-out reflexivo no meio da peça, e uma sonoplastia/trilha sonora criada, escolhida (Fabiano Krieger e Lucas Marcier), operada (Lucas Marcier) e interpretada (Moraes e Lima) de forma excelente nos mínimos detalhes. Pontuais, seguros, ricos: os usos da iluminação e da trilha sonora não são ilustrativos, mas informacionais. As escolhas, assim como a opção por figurinos simples (Antônio Medeiros), mas não menos interessantes, expressam a concepção como um todo, definem o espetáculo como uma estrutura circular e, talvez, por isso, confortável, palatável, agradabilíssima.
Ainda que os focos caiam sobre Drica Moares que, com a saúde recuperada, volta aos palcos, não é possível dizer que ela apresenta um trabalho melhor que Mariana Lima. Ambas estão igualmente ótimas em cenas: exibem um discurso dito aos solavancos, com movimentos dispersos e palavras cortadas pela metade. Tudo que o que poderia parecer ruim, aqui é excelente porque perfeitamente coerente com o texto e com a concepção. Em momentos determinados, gestos disciplinados em giros certeiros, pausas bem marcadas, entonações bem dirigidas. A personagem citada Sasha, o camping, o medo do urso, a visão da cachoeira ganham importância, fazem sentido, são marcas de coesão. E só são porque o devido valor lhes foram dados.
“A primeira vista” corta de uma forma muito sutil, enquanto nos oferece “uma bonita visão”. O passado, no seu lugar idealizado, é humanamente mais bonito. Quanto à tona, ele nos pergunta: “Por que estou aqui? O que farão comigo agora vocês que me despertaram?” Então, vem a catarse, o choro, a reflexão e o aplauso. Aquele do tipo grato, sincero, orgulhoso, honrado de compartilhar com elas (?) as suas histórias recém contadas.
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Ficha técnica:
Texto: Daniel MacIvor
Direção: Enrique Diaz
Elenco: Drica Moraes e Mariana Lima
Cenografia: Marcos Chaves
Figurinos: Antônio Medeiros
Iluminação: Maneco Quinderé
Música: Fabiano Krieger e Lucas Marcier
Tradução: Daniele Ávila
Assistência de direção: Keli Freitas
Preparação corporal: Cristina Moura
Técnica Alexander: Valéria Campos
Visagismo: Ricardo Moreno
Assessoria de Imprensa: Factoria Comunicação
Projeto gráfico e ilustrações: Olivia Ferreira e Pedro Garavaglia / Radiográfico
Conteúdo Web: Janeiro Conteúdo
Fotografia: Leonardo Aversa, Enrique Diaz e Nil Caniné
Diretor de cena: Márcia Machado
Assistente de figurino: Victor Saraiva
Cenotécnico: Luís Antônio Camarão
Produção de cenário: Sérgio Martins
Assistente de produção: Ailime Cortat
Operação de luz: Ana Luiza de Simoni
Operação de som: Lucas Marcier
Produção Executiva: Nil Caniné
Direção de Produção: Sérgio Martins
Realização: Machenka Produções Artísticas
Alô, Rodrigo:
ResponderExcluirPostei tua ótima crítica hoje no meu blog pois a peça será apresentada em Pelotas. Um abraço, Vaz
http://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com.br/2012/06/primeira-vista.html
Alô Rodrigo
ResponderExcluirPostei hoje no meu blog tua ótima crítica sobre a peça A primeira vista, pois ela será apresentada em Pelotas. Um abraço, Vaz
http://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com.br/2012/06/primeira-vista.html
Eu também adorei essa peça, gostaria muito de revê-la. Boa crítica.
ResponderExcluirSaudações.