segunda-feira, 12 de março de 2012

Julia (RJ)

Foto: Gui Maia

No virtual e no real, um excelente espetáculo

                    Christiane Jatahy e Cia Vértice afirmam de forma definitiva que não há jeito certo e jeito errado de atualizar uma obra. O espetáculo “Julia”, em cartaz no Teatro Sérgio Porto, parte de uma dramaturgia cênica paralela ao texto original “Senhorita Júlia”, escrito em 1888 por August Strindberg (1849-1912). Sem medo do perigo, Jatahy subverte um dos aspectos essenciais do realismo naturalismo e apresenta um dos melhores espetáculos da temporada carioca. Uma vez que é essencial para o leitor de um texto realista naturalista a percepção de que os personagens são parte de um ecossistema, agindo de forma selvagem porque por instintos nem sempre racionais, mas inevitavelmente além de qualquer regra moral, o sufocamento é lugar comum pela confortabilidade. Ao investir numa atmosfera que aproxime o realismo da peça da realidade além da narrativa, de forma que  as marcas de verossimilhanças sejam tantas a ponto da catarse ser mera conseqüência, qualquer encenador tem grandes chances de oferecer um excelente trabalho. Jatahy foge desse lugar confortável, abre a cena, experimenta o sabor com outras linguagens, desafia o perigo. E vence. Nisso está o seu maior mérito e o nosso maior ganho.
                Em “A linguagem cinematográfica”, o semioticista Christian Metz discute a questão da realidade no teatro e no cinema. Segundo o autor, é porque o teatro é excessivamente real que o público investe no que vê menos esforço em entendê-lo como real. No cinema, uma vez de que o que se assiste são fantasmas, cabe ao público maior empenho e, por isso, é que a experiência espectorial fílmica produz com mais facilidade a sensação do real do que no teatro. A semioticista Anne Übersfeld, em “Para ler o teatro”, traz a questão do signo teatral e afirma não haver signos teatrais, mas signos tornados teatrais. Diferente do cinema, que usa ontologicamente o signo da fotografia, o teatro parte de uma estrutura que marca o seu acontecimento: A interpreta B diante de C. A imagem cinematográfica de uma mesa só funciona enquanto signo de mesa. Uma mesa cenográfica, além de funcionar como signo (teatral) de mesa pode, de fato, ser uma mesa. Nesse contexto de linguagens parecidas, mas bastante diferentes pela sua essência, o público de “Julia” sofre a dispersão de ora ver teatro, ora ver cinema e, nos dois, fruir a mesma história de Júlia, uma menina rica de 17 anos que, numa madrugada de festa em sua mansão, flerta com o motorista de seu pai, criado como ela na mesma casa, mas em setores sociais bastante diferentes. Com soberba maestria, Jatahy pinça o teatro e o cinema conforme convém para apresentar a sua versão da história: usa o cinema quando é preciso sufocar o espectador de marcas de realidade e o usa o teatro quando é preciso incluir o público (humano) diante de personagens (também) humanos.
                Quando se fala em cinema, naturalismo significa algo bastante próximo do real além da narrativa. Quando o assunto é teatro (ou literatura), está se chamando a atenção para o fato de que os personagens e suas índoles estão além de qualquer julgamento moral. A menina Júlia e o empregado Joelson não podem ser considerados nem bons, nem maus. Na madrugada em que a história se dá, eles são apenas dois bichos irracionais jogando com o perigo sem reconhecer o perigoso como algo ruim. Júlia é a criança que brinca de ser adulto. Ela seduz os convidados da festa, seduz o motorista de seu pai, vai para a cama com ele, pede para ouvir “Eu te amo” e sonha em viajar, em morrer, em usar sapato de salto bem alto e vestido curto. Longe de qualquer noção de responsabilidade, ela se diverte, ela sofre, ela age e reage sempre com a mesma intensidade, afinal, a brincadeira termina só quando termina. Por sua vez, Joelson é o adulto que brinca de ser criança. Quando a garota rica lhe chama para brincar, ela constrói castelos no ar, estabelece personagens e funções, enreda toda uma narrativa, vivendo os sonhos que está construindo. É apenas quando a manhã chega e a onda destrói o castelo que, com tanto esmero ele construiu, que ele sente que o dia no mar acabou e é hora de voltar para o subúrbio. No jogo de Strindberg e de Jatahy, o poder passa de mão em mão como uma bola que vai sendo jogada até que queime a palma de um jogador, ou de todos.
                Julia Bernat apresenta um resultado absolutamente excelente na interpretação de Júlia. A jovialidade, a beleza e a sensualidade natural da jovem atriz emprestam à personagem tudo o que ela precisa para ser. A graça nos movimentos, a disciplina dos gestos bem postos e o carisma na relação com o público emprestam, por sua vez, à personagem tudo o que ela precisa para estar. Gritos, sorrisos, choro e deboche, em tudo Bernat deixa ver a Júlia intensa prevista por Strindberg e atualizada por Jatahy. Os gestos mínimos, melhores ao cinema, estão em igual posição com os gestos mais expressivos no teatro, elevando os valores da concepção estética da obra. O mesmo se deve dizer de Rodrigo dos Santos que interpreta Joelson. Embora haja uma falsa percepção de apagamento do seu personagem diante da força de Júlia/Julia, que ocorre pelas marcas de ingenuidade, não é possível deixar de enaltecer a força do ator que emprega ao personagem a mágoa, o sofrimento acumulado, a revolta há muito tempo presa. Como Bernat, Santos usa de vários níveis, ritmos e potencialidades em seu discurso, fornecendo à audiência os instrumentos necessários para o fruir o texto e a interpretação a contento. Há ainda o pequeno, mas também elogiável trabalho de Tatiana Tiburcio, que intepreta Cristiane, a cozinheira da casa. Com uma frase, ela representa a forma humana da faca, objeto presente numa das cenas finais, o que só se dá pela positiva porque bem posta força que atriz emprega ao dizer o texto e contracenar com Rodrigo dos Santos.
                Apenas elogios podem ser destinados ao cenário de Marcelo Lipiani que se apresenta afirmativamente como cenário, embora não deixe de fincar definitivamente as bases de realidade necessárias, agindo, dessa forma, em completa coerência com a concepção de Jatahy. Deve-se dizer o mesmo da iluminação de Renato Machado, iluminando os espaços, os atores e os momentos sem que nada saia do ritmo, sem que nada se perca e que nenhuma oportunidade seja desperdiçada. Na direção musical, Rodrigo Marçal conduz, participando principalmente dos momentos em que cabe ao público pensar no que está vendo, engolir a situação, fruir. O figurino de Angele Fróes age positivamente contando a história, trazendo informações essenciais a respeito dos personagens e do enredo sem ser nem redundante, nem meramente ilustrativo.
                Diferente do que se pode pensar, atualizar uma obra não é pegar um texto de 1888 e trazer para 2012. Assim como não se consegue entrar duas vezes no mesmo rio porque a) as águas do rio já não serão as mesmas; e b) porque quem entra já terá vivido outras experiências; tornar cênico um texto literário (ainda que dramático) significa partir de signos, de pessoas, de percepções. “Julia” usa a câmera, a participação de um cinegrafista em cena, cenários próprios para o cinema e mantém uma mesa de produção com a diretora, assistentes e um monitor ligado em lugar visível para ao público. A audiência de agora está acostumada com reality shows, com câmeras em toda a parte e com vídeos na internet abrindo a intimidade humana para o universo banda larga. Se o atual é só o contrário de virtual, Jatahy, inteligente e belamente, apresenta os dois.

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Ficha técnica:

Direção: Christiane Jatahy

Adaptação do texto “Senhorita Julia” de August Strindberg
Elenco: Julia Bernat e Rodrigo dos Santos
Direção de arte e cenário: Marcelo Lipiani
Concepção de cenário: Marcelo Lipiani e Christiane Jatahy
Direção de fografia: David Pacheco
Iluminação: Renato Machado
Direção musical: Rodrigo Marçal
Figurino: Angele Fróes
Orientação corporal: Dani Lima
Programação visual: Radiográficos
Assessoria de imprensa : Palavra
Conteúdo e webmarketing : Janeiro
Projeto de som: Paulo Ricardo Nunes
Mixagem de som: Denílson Campos
Projeto de projeção : Alexandre Bastos – Nova Mídia
Fotos: Gui Maia
Câmera ao vivo : David Pacheco – Paulo Camacho (stand in)
Assistente de direção: Fernanda Bond
Assistente de Figurino: Fernanda Theóphilo
Arranjos e instrumentos : Luciano Correa
Participação especial “ funk da piscina”: Felipe Abib e Cintia Reis
Aderecistas: Luiz e Massaira
Marceneiro: Lucio da Palma
Equipe de cenotécnicos:S.F Serpa Fernandes
Participação especial : Gilda (a nossa amada canarinha)
Operador de vídeo: Léo França
Operador de som: Ribamar Mathias de Oliveira
Operadora de Luz: Elisa Tandeta
Diretor de Palco: Marcelo Gomes
Diretor Técnico: Branco Katona
Produção executiva: Lara Schueler e Cristiano Gonçalves
Estagiária de produção: Jéssica Santiago
Apoio de Produção: Marcio Gomes
Direção de Produção Filme/Peça – Cláudia Marques
Um projeto da Cia. Vértice

Ficha técnica Filme
Direção de fotografia: David Pacheco
Atriz: Tatiana Tiburcio
Atriz mirim: Alice Gastal
Ator mirim: Lucas Banhos
Pai do ator mirim: Gerson de Sousa
Produção: Manuela Duque
Edição: Sergio Mekler e Christiane Jatahy
Assistente de Direção: Lara Carmo
Assistente de Câmera: Bacco Andrade
Assistente de Edição : Mari Becker
Logger: Érica Rocha
Fotógrafo Still: Gui Maia
Assistente de produção: Miriam Balen
Produtor de Locação: Rodrigo Magalhães
Produção de Arte : Marina Lage
Técnico Som Direto : Paulo Ricardo Nunes
Técnico Som Direto: Vanilton Vampiro
Mixagem: Denílson Campos
Microfonista: Fabio
Eletricista: Marcelinho Pecis
Maquinista: Edison Mugica
Assistente de Maquinária: Rodrigo Tavares
Assistente de Elétrica: Cesinha
Assistente de Maquinária: Beto
Assistente de Maquinária: Rodrigo
Geradorista: Walk
Assistente de Figurino: Fernanda
Storyboard: Raphael Jesus
Locação: Anna Santos e João Santos
Equipamento de Elétrica e Maquinária: Maico Luz e Quanta
Equipamento de Elétrica: Air Star
Caixa Estanque: Fernando Young
Monitores: Breno Cunha
Dolly: Edison Mugica
Equipamento de Mergulho: X Divers – Rodrigo Figueiredo
Efeito de sangue: Maurício Bevilacqua
Gerador: Rondinelli Pinto
Rádios: Kleber Souza
Seguranças: Body Guard – Anderson
Catering: Set food – Nicolau Barbosa
Caminhão de Eletrica e Maquinária: Finizola – Claudia
Van de Camera e Som: Duda Lima
Van de Equipe: Jair Junior
Colorista: Fabrício Batista
Advogados: Renato Guimarães
Elenco de Apoio: Gerônimo de Sousa, Davi Santos, Jupiara Gomes, Sidnei de Oliveira, Talisson Anacleto, Michele Anacleto, Diego da Silva, Lucio Lopes, Nilda Anacleto, Lenilson de Sousa, Margarida Marques, Jucelina Gonçalves, Jairo Fernandes, Edilson Martins e Geraldo do Nascimento
Realização: Sesc
Co-Produção: Fábrica de Eventos e AXIS Produções

Um comentário:

  1. Realmente um Espetáculo Maravilhoso!!! Ao assisti-lo me senti presenteada! Um cenário incrível, original e muito interessante, e as atuações deslumbrantes, fortes e com muita cumplicidade de Julia Bernat e Rodrigo dos Santos! Parabéns!!! Solange Goldemberg

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