Foto: divulgação
Homenagem à Judy, ao gênero, ao teatro e ao público de teatro brasileiro
Charles Moeller e Claudio Botelho sabem fazer musical. E musical aqui quer dizer comédia musical americana, um gênero teatral específico, com pais e avós conhecidos e filhos vivos. “Judy Garland – O fim do arco-íris” encerra a temporada no Rio de Janeiro cheia de vitórias: indicações para prêmios importantes por parte da crítica especializada, análises, como essa, bastante positivas e um público pagante que só não é maior porque um espetáculo como esse é caro demais para ser mantido pela realidade brasileira por temporadas anuais como acontece no primeiro mundo. Com alguns senões, a produção é um orgulho para o país ou, pelo menos, para dois estados: Rio de Janeiro e São Paulo (já que os musicais raramente viajam pelos outras vinte e cinco partes da nação, e é uma pena que não haja patrocínio suficiente para isso).
Cláudia Netto é uma estrela. Excelente atriz e também excelente cantora, ela dá vida à personagem Judy Garland (1922-1969) nos seus últimos seis meses de vida. Na visão de Peter Quilter, autor do texto, a atriz e cantora Judy está prestes a se casar com seu quinto marido e apresenta em Londres o seu último show: “The talk of the town”. Mickey Deans e Anthony, respectivamente, o noivo e o pianista, vivem as crises causadas pela abstinência e uso das drogas que, ora prejudicam, ora impulsionam a vida da mãe da Dorothy de “O mágico de Oz”. Alguns fatos existem além da narrativa (deve-se evitar sempre dizer a confusa palavra “realidade”.): Morto, o corpo de Judy Garland foi encontrado num hotel em Londres em 1969. Deans foi seu último marido e, também, seu último empresário. E ele era mesmo anos mais jovem do que a atriz. Por fim, é de notório conhecimento, a incapacidade de mãe de Liza Minelli de se afastar das drogas, vício a que foi submetida desde a infância quando ainda uma garotinha dos estúdios da Metro. “Judy Garland – O fim do arco-íris” não é um mero (e excelente) documentário pela existência de Anthony, personagem fictício, mas não é só nele que estão os méritos de Quilter. A dramaturgia a que se assiste em cena é uma resposta raivosa aqueles que dizem impunemente que, em musicais, importam apenas boas canções. Ao público, está oferecido três personagens em seus conflitos internos, suas contradições, suas verdades e mentiras, suas profundidades e seus brilhos. O uso das drogas pode ser bom e pode ser ruim. Um homossexual pode ser apaixonar por homens e por mulheres. Um homem aparentemente interesseiro pode estar apaixonado. Não há como se desvencilhar do amor e o sentimento permanece quando o assunto é contrato de trabalho, saúde e planos para o futuro. Quilter arquiteta cada cena de forma a apresentar uma surpresa. Informa, mas não leciona. Emociona, mas não sensacionaliza. Diverte, mas não superficializa. Os diálogos são orgânicos, a evolução é inaparente, o desfecho é previsível, como em qualquer musical é, mas é tão belo, tão generoso, tão inteligente que sai-se do teatro com a sincera certeza de que, antes de um grande musical, é esse uma grande peça de teatro.
Quando acima se disse que Cláudia Netto dá vida à Judy Garland, chama-se atenção para o fato de que é a vida um todo em suas partes. Sua interpretação permite ver a sua personagem em seus altos e baixos, a sua “descida ao inferno”, mas, também, a sua recordação do “céu”. Há estudo visível nos mínimos detalhes, conseqüências estéticas de uma formação que vem de longe. Há ritmo, há presença cênica, há talento aliado à técnica. Em alguns momentos, é-se capaz de jurar que se ouve a um playback, tamanha a semelhança da voz de Netto em relação à de Garland, sinal de que há trabalho interpretativo até mesmo no signo musical. O resultado é que o público é presenteado com a sensação inigualável de estar diante da verdadeira Judy Garland. Eis o mais sublime do teatro: Claudia Netto é Judy Garland.
Francisco Cuoco interpreta Anthony e antes de sobre seu trabalho de interpretação, há que se falar de uma questão a respeito da produção: o fato de Cuoco estar envolvido nesse projeto. Anthony é um personagem secundário e, a princípio, sem brilho. Por outro lado, Francisco Cuoco é um ator reconhecido nos muitos cantos desse país nas muitas décadas de televisão nacional. E bem reconhecido. Um artista e um profissional de sua estirpe num personagem como esse, aliás, substituindo outro ator, já é sinal de sua generosidade, de sua jovialidade, de sua qualidade aplausível. O resultado é uma coadjuvância absolutamente perfeita: com personalidade, executando suas funções narrativas, conferindo níveis mais profundos, propondo novos caminhos para a história, possibilitando novos sentidos e sempre com muito carisma.
Igor Rickli, que interpreta Mickey Deans, é um ator alto, bonito, forte e másculo. O problema de sua interpretação é justamente o visível esforço que ele parece fazer em parecer alto, bonito, forte e másculo. As participações de Rickli pesam pelo excesso de marcas e pela falta de verossimilhança. Em vários momentos, é nítido que Rickli está querendo parecer bonito e, como ele é, gaps negativos surgem, a verdade, assim, se compromete. Felizmente, a direção de Moeller dá ritmo suficiente para que as falhas sejam mais difíceis de se ver. Hábil, o diretor desenha seu espetáculo em forma crescente, o que é ótimo para quem assiste.
Com cenário, figurino, maquiagem e direção musical sem falhas, “Judy Garland – O fim do arco-íris” cumpre positivamente todos os requisitos para uma boa comédia musical americana (esse é o nome do gênero, não importa se é feita no Brasil, no Japão ou na Europa): riqueza em detalhes, entradas e saídas sem falhas, condução ao ápice, forte apelo à identificação e clímax bem definido. Assim, os figurinos de Judy são cada vez mais bonitos e a trilha sonora se volta para os clássicos. De “How insensitive”, versão de “Insensatez”, de Tom e Vinicius, a “The man that got away”, “The trolley song” e “Just in time”, chegando a “Over the rainbow”, a escolha musical é acertadamente ascendente. As falhas estéticas na produção, nesse fim de temporada, são detalhes: papéis prateados que caem do urdimento durante toda a encenação, um fio de energia elétrica visível vindo da coxia até a mala de roupas de Judy e um contrarregra em cena esperando a sequência terminar para tirar o cenário são pontos negativos que entristecem a análise. Nenhum deles consegue felizmente tirar o brilho do resultado final.
Lembrada por sua gargalhada pela própria filha, Judy Garland paira no imaginário coletivo de muitas gerações independente de nacionalidade, gosto estético, orientação sexual e classe social. O musical que a homenageia, pela forma séria e talentosa com quem é viabilizado, também homenageia o gênero e o teatro brasileiro com tão valorosas interpretações e trabalhos de ordem técnica.
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Ficha técnica:
(O programa do espetáculo é vendido ao público, em um mal exemplo trazido do exterior. A divulgação dos nomes dos técnicos responsáveis pelo espetáculo deveria estar incluída no preço que se cobra ou no gentil convite para ver os seus trabalhos expostos em cena.)
DIVA!
ResponderExcluirJudy Garland tem ares d super produção, ótimo elenco, canções belíssimas, mas roteiro fraco e c/ piadas sem graça #deusono
ResponderExcluirAssisti ontem e amei! Nao sabia nada da vida de Judy a nao ser o Magico de Oz e fiquei fascinada em saber mais a respeito depois do teatro, pois sua historia e linda e muito triste tbm. Francisco Cuoco e maravilhoso e Claudia e fantástica.
ResponderExcluirQuem nao viu esta peca tem que ver. E imperdivel!!!