sábado, 17 de março de 2012

Dorian (RJ)

Foto: divulgação
Uma versão pós-dramática para uma história dramática


                Publicado do jeito que conhecemos em 1891, o romance realista “O Retrato de Dorian Gray”, escrito por Oscar Wilde (1856-1900), causou polêmica na sociedade da época. Hoje, considerado uns dos livros mais importantes da história da literatura, a obra é referencial quando o assunto é relacionamento homoafetivo e hedonismo. Basil Hallward é um pintor medíocre, talvez porque moralista, que, quando a história começa, está pintando o retrato de um jovem amigo seu chamado Dorian Gray, esse de extraordinária beleza. Lord Henry Wotton é amigo do pintor, um dandy aristocrático, que acompanha a evolução do quadro e, aos poucos, acaba exercendo cada vez mais forte influência sobre Gray. A importância da beleza, a durabilidade da juventude, o poder que estética exerce nas relações sociais são os temas das conversas entre três jovens ricos no início da narrativa. Finalizado o quadro, o mais belo trabalho de Hallward, o pintor se nega a expô-lo, dando-o de presente para seu modelo inspirador. Gray, por sua vez, fica terrificado com o que vê. Tão logo recebe a obra, trata de escondê-la porque está certo de que jamais será tão jovem e tão belo como o está retratado na tela. Em resumo, a corrupção moral de Gray, agora apaixonado por si mesmo, não permite que a velhice afete o homem, permanecendo ele jovem ao longo dos anos. É a figura pintada no quadro escondido que envelhece. O desenrolar surpreendente e o desfecho aterrador foram assuntos de diversas atualizações ao longo dos cento e vinte anos que seguiram à publicação do livro: quadros, poemas, outros romances, filmes, músicas e, em especial, peças de teatro recriaram o universo (ou parte dele) primeiramente criado por Wilde. A valorosa montagem de “Dorian”, dirigida por Renato Farias e produzida pela Companhia de Teatro Íntimo, é mais uma delas, daí sua responsabilidade, seus méritos e seu valor.
                Renato Farias organiza o palco em forma de mercado. Em formato de semi-arena (público nos três lados do palco), o espaço cênico é delimitado por gôndolas cenográficas, pequenos balcões, bancas, enfim, espaços onde os personagens se ancoram e podem, assim, assistir ao espetáculo mesmo quando não estão em cena, uma referência, (felizmente) apenas formal, ao teatro farsesco. Lord Henry (Rafel Sieg) e Lady Victoria Wotton (Fernanda Boechat), Dorian Gray (Caetano O’Maihlan, substituindo Augusto Garcia), Sibyl Vane (Letícia Cannavale), Alan Campbell (Hugo Resende), Basílio Hallward (Thiago Mendonça) e James Vane (Márcio Mariante), cada um, tem o seu próprio ambiente fixo no espaço cênico, do qual recebe o público, interage com ele e com a cena a que todos assistem. O cenário de Melissa Paro, então, consiste basicamente na composição desses ambientes e, nos pequenos detalhes, o resultado é bastante positivo. É possível identificar o universo de cada figura ao longo da apresentação, reconhecendo os objetos como reais e não apenas diegéticos, o que auxilia fundamentalmente na atualização de um romance realista. E, sobre essa definição da análise da obra literária, é preciso fazer algumas considerações.
                Mesmo com um elemento fantástico (o fato da figura pintada envelhecer), “O Retrato de Dorian Gray” é um romance realista psicológico, ou seja, o leitor conhece as diferentes esferas da mente do protagonista, a quem acompanha em terceira pessoa, e dos adjuvantes, tendo, a seu dispor, meios de criticá-los todos. Numa análise actancial (Greimas), temos o protagonista Dorian (sujeito) lutando contra o envelhecimento (a juventude = objeto), tendo Lord Henry como quem o ajuda (adjuvante) e o seu retrato como quem o atrapalha (opositor), Narciso como quem o estimula (destinador) e o próprio Gray como quem recebe os favores de sua empreitada (destinatário). Ou seja, Dorian e o seu retrato são o centro da narrativa, o vetor da história, o elemento em torno do qual tudo gira. No espetáculo teatral, no entanto, não é isso que acontece. A concepção de Renato Farias parece ter tirado o foco sobre Dorian Gray ao contar a história de Wilde usando a linguagem teatral, abrindo a discussão para todos os personagens e contextos. Em seu espetáculo, desde a entrada do público, o tema é a beleza, esse expresso pela interação entre os atores e o público na recepção. E, ao longo da peça, uma vez que todas as “bancas” estão iluminadas praticamente o tempo inteiro, está claro o convite para o espectador prestar a atenção em outros detalhes além do que é contado no centro da arena. Lord Henry e Basílio, muito importantes no romance, permanecem fundamentais na peça, mas aqui dividem as atenções com a atriz Sibyl e seu irmão James, Lady Victoria e o químico Alan. E todos, em conjunto, por serem vistos pelo público durante todo o tempo da apresentação, têm tantas oportunidades de ganhar a atenção do público quanto o protagonista, o que definitivamente não acontece no livro. Em termos estéticos, o resultado não é nem negativo, nem positivo, mas outro, afinal, muito mais relações estão expostas durante mais tempo. A conseqüência negativa é que o trabalho de interpretação, nessa concepção, tem muito mais desafios a serem vencidos. Em outras palavras, é difícil estar bem em “Dorian”. O lado positivo é que o público pode escolher onde quer centrar a sua atenção, a partir de quem (de qual personagem) fruir a história.
                O diretor Renato Farias têm duas excelentes atrizes no elenco, que recebem essa avaliação pela forma como ambas conseguem positivamente driblar as dificuldades da encenação. Letícia Cannavale é quem oferece o melhor resultado de todo o grupo, favorecida pelo seu desaparecimento após a morte da sua personagem e pelo fato de suas cenas no teatro acontecerem quando todas as luzes estão (raramente) apagadas. A atriz tem boa dicção, é carismática e permite identificar um trabalho de interpretação com vários níveis,em termos dos usos do corpo, dos movimentos e da voz. Fernanda Boechat, em vários momentos, exibe os mesmos bons resultados de Cannavale, o que é ótimo. A cena entre Dorian e Alan é seu momento negativo, pois nela a atriz “puxa o foco”, fazendo dividir as atenções do público. O elenco masculino, cujos personagens são os mais importantes na história de Wilde, tem mais trabalho e, consequentemente, os bons resultados são conseguidos com mais esforço. Thiago Mendonça oferece uma frágil participação, prejudicado pelo empobrecimento do seu personagem na versão teatral em relação à riqueza dele (Basil) na obra literária. Em direção oposta, Hugo Resende teve seu personagem (Alan) supervalorizado, apesar de não haver aqui bases suficientemente seguras para isso. Rafael Sieg (Lord Henry) e Márcio Mariante (James Vane) oferecem bons trabalhos à assistência, apesar de não haver na encenação foco que os valorize a ponto de serem considerados excelentes. Caetano O’Maihlan, ao interpretar Dorian, é frágil e superficial, o que é positivo uma vez que os esforços do ator nesse sentido auxiliam o público a perceber a leviandade do personagem protagonista frente a sociedade em que vive e a si próprio.
                “Dorian” é um espetáculo bastante cuidadoso, apresentado, ao mesmo tempo, em vários detalhes. O fato de, ao espectador, estar possível fruir os diversos (e ricos) elementos conforme queira, é prejudicial, porque se trata de uma história tradicional, isto é, com início, conflito, ápice e fim bem definidos. Farias oferece uma versão pós-dramática a uma história contada dramaticamente nos mais importantes elementos de que ela dispõe. Apesar disso, diante da plateia, está visível um trabalho digno de aplausos e casas cheias.

*

Ficha técnica:

Da obra de Oscar Wilde
Direção: Renato Farias
Elenco:
Caetano O’Maihlan
Fernanda Boechat
Hugo Resende
Letícia Cannavale
Rafael Sieg
Thiago Mendonça
Márcio Mariante
Música: Damu Shiva
Direção de movimento: Gabriela Haviaras
Preparação Vocal: Jorge Luis Cardoso
Cenografia: Melissa Paro
Iluminação: Rafael Sieg
Supervisão de iluminação: Paulo Cesar Medeiros e Tábata Martins
Direção de arte, figurino e desenhos: Thiado Mendonça
Visagismo: Bruno Fattore
Orientação emocional: Sérgio Meyer
Fotografia: Carol Beirez
Programação Visual: Tarcísio Lara Puiati
Assessoria de imprensa: Roberta Rangel
Produção: Gabriela Haviaras e Clara Soria
Direção de Produção: Augusto Garcia
Realização: Companhia de Teatro Íntimo, Pela Noite Produção Artísticas e Canampo Produções Artísticas

4 comentários:

  1. Que beleza da crítica, agora quero outra em 20 linhas, vamos lá! heheheh, no aguardo.
    Parabéns.

    Guggo

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  2. Então, me pague para isso, e, infelizmente, me dê (ou dê para a análise teatral) um espaço tão ínfimo. Obrigado.

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  3. Pois está foi minha preocupação, acostumado as críticas em jornais, rasas e faceiras, me delicio com está mini-aula carregada de sutilezas e delicadezas. Meia página no GLOBO pra ti!
    Em tempo: a peça Dentro Fora do Carlos Ramiro foi um "tapa na cara da sociedade", tô tonto até agora.

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  4. E não é? Eu queria muuuito ter visto hoje a peça de novo. Quando eu vi, eu escrevi a crítica, mas não estou satisfeito com aquele texto e, com eles aqui no Rio, tinha a oportunidade de escrever um novo texto para o blog do Rio. Me perdi no horário de ontem, e acabei perdendo a oportunidade. Shame on me! Botei o link da crítica velha aí embaixo. Obrigado, querido, pelas palavras, pelo retorno. Aos poucos, vou tentando aprender mais.

    http://teatropoa.blogspot.com.br/search/label/Dentrofora

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