Foto: André Mantelli
Horizontalidade: o que eu penso não tem mais valor do que você pensa
Entre tantas possíveis, uma útil divisão da narrativa cênica mundial é aquela que estabelece três grandes categorias: espetáculos adramáticos, dramáticos e pós-dramáticos. Samuel Beckett seria um expoente exemplar para o primeiro grupo, ele que cujas peças demonstravam grande esforço no apagamento do tempo, na definição de um lugar e na interrelação entre os personagens. O grande mainstream do teatro mundial poderia ser facilmente lido no segundo grupo, cujas grandes características seriam a coerência, a coesão e a auto-referenciação. “Adeus à Carne ou Go To Brazil” receberá avaliações bastante positivas somente se for lido a partir do pós-dramático, termo cunhado pelo teórico alemão Hans Thies Lehmann. Nesse tipo de produção, o espectador se encontra com elementos que garantam possíveis relações internas, sinais sutis de coesão, mas estará impossibilitado de fazer qualquer afirmação absoluta sobre o que vê, podendo unicamente entender as próprias conclusões como conseqüências particulares de sua subjetividade diante da obra. Trocando em miúdos, Michel Melamed usa da evolução narrativa de um desfile de carnaval (comissão de frente, carro abre-alas, passistas, ala das baianas, bateria, etc) para pincelar uma possível organização estrutural com início e fim, mas dispõe aleatoriamente dos signos, jogando para a plateia a responsabilidade de dar sentido para o que vê. O resultado é desconfortante para quem está acostumado a fruir historias tradicionais cujos mocinhos e bandidos, mote, ápice e tema são facilmente encontrados, porém, no momento em que se aceita o convite do encenador de dividir com ele a autoria do trabalho, tem-se aí um belo trabalho cênico capaz de orgulhar o teatro carioca.
Apresentar uma dramaturgia tão fluída é um desafio para qualquer encenador. Enquanto o teatro dramático converge (as flechas do sentido vão em direção a um ponto central, vetor de toda a narrativa), o teatro pós-dramático diverge (as flechas do sentido partem do ponto central, mote estrutural para os signos presentes), havendo nos dois uma história (no primeiro, a história está na peça; no segundo, a história está em quem frui a peça.). Analisar, por isso, um espetáculo como “Adeus à carne” é mais difícil: como identificar o limite entre o que eu entendi/não entendi e o que o encenador me contou/não me contou? A saída é abdicar advertidamente dessa encruzilhada e partir para 1) qual é o mote estrutural do espetáculo? 2) como os signos foram dispostos? Definido o ponto de partida, podemos partir para a crítica.
Três elementos são fundamentais para identificar o mote estrutural nesse caso: a) o título - “Adeus à Carne ou Go To Brazil”; 2) a cena inicial – um ciclorama vermelho, um homem e uma maca e um grande ostensório; 3) as interscenas - a descrição das alas de um desfile de escolas de samba. Começando pelo último, o carnaval (festa da carne) acontece nos quatro dias que antecedem o início da quaresma, quarenta dias antes da páscoa. É uma festa que nasce na Idade Média, como um momento de folga antes das semanas de penitência que virão em preparação para a celebração da morte e da ressurreição de Cristo. Festeja-se a carne, porque, depois, festejar-se-á o espírito. Despede-se da carne, para encontrar-se com o espírito. Na Quinta-feira Santa, final da quaresma, celebram-se três momentos da Santa Ceia: 1) o Lava-pés; 2) a instituição do Sacerdócio; e 3) a instituição da Eucaristia. Sobre esse último, segundo o Evangelho, o corpo (carne) de Jesus tornar-se-á pão e o sangue vinho. Na madrugada seguinte, Jesus dirá adeus à forma humana e será apenas espírito. O ostensório é um objeto da liturgia cristã em que se coloca uma grande (porque para ser olhada) hóstia consagrada (hóstia que passou por uma missa e foi, assim, transformada em Corpo de Cristo, segundo a crença cristã) para que Jesus Vivo seja venerado pelos crentes. Ela é sinal de que o Senhor não é mais Homem, mas de novo apenas Deus. O vermelho usado na cena inicial é a cor do Espírito Santo, de forma que, observando esses elementos iniciais dispostos na dramaturgia de Melamed já é possível prever que o espetáculo tratará sobre o homem em tudo aquilo que não é ainda divino. O que o encenador anuncia é uma despedida, uma festa em que se celebra a carne antes dela deixar de ser. Caixões que se encontram com carrinhos de bebês, sexo, drogas, alienação cultural (televisão, musicais da Broadway,...), tristeza, frieza, ostentação, hipocrisia, medo, paixão e uma série de outros pontos de vista, muitos deles associados às questões nacionais, ganham formas nas sequência de cenas interpretadas por Bruna Linzmeyer, Michel Melamed, Pedro Henrique Monteiro, Rodolfo Vaz, Thalma de Freitas e Thiare Maia, todos eles, em momentos mais ou menos, com ótimas performances. Em cada cena, há passagem de tempo (drama), lugares (drama) e personagens (drama), embora nem sempre seja possível identificá-los com exatidão. No todo, prevalece a fluidez, cabendo ao espectador dar unidade para as figuras que lhe foram apresentadas.
O excesso do uso de contrastes (luz e sombra) e o uso marcante de cores sobre o ciclorama aproximam o espetáculo dos trabalhos de Bob Wilson, encenador americano expoente do teatro pós-dramático (Recentemente, no Brasil, apresentou Quartett, Happy Days e Krapp’s last tape), embora a luz de Adriana Ortiz careça de maior precisão em alguns momentos (focos com limites mais aparentes e aberturas e fechamentos menos relutantes, por exemplo). No mesmo sentido, a importância visual de “Adeus à carne” poderia ser mais elevada houvesse maior relação entre os tecidos dos figurinos de Luiza Marcier e a iluminação, de forma que os efeitos resultantes fossem tão impactantes quanto as dramaturgias de cada cena. No todo, a escolha da trilha sonora, bem como a estética disposta no cenário, apesar de deixar ver algumas falhas, expõem a obra positivamente.
Sobre o ritmo, construir uma dramaturgia baseada nas seções de uma escola de samba em desfile é gesto que muito dificilmente não traria problemas. Na cabeça do espectador, paira a pergunta fatal: “Quantas partes faltam?”. Além disso, a dosagem das cenas não foi posta de forma contribuitiva: a cena das emissoras de TV como alunas de uma aula é impactante pelo alto grau de identificação com o público. Depois dela, outro momento com igual força é raro, o que dá a sensação de descendência. Felizmente, a cena final é um acerto: acostumados aos ápices dramáticos, todos gostam de um musical. Inteligente, o efeito consiste em um grande acerto do dramaturgo.
No programa entregue ao público, consta na parte superior da página inicial o seguinte: “Sobre ADEUSÀCARNE ou Go To Brazil:”. Segue um longo espaço em branco e, bem embaixo, a assinatura “por Michel Melamed”. Não há dúvidas: para o encenador, vale o que o público entendeu (mesmo que cada um tenha entendido algo totalmente diferente do outro). Viva a horizontalidade!
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ficha técnica:
atuação: bruna linzmeyer, michel melamed, pedro henrique monteiro, rodolfo vaz, thalma de freitas, thiare maia
criação e direção: michel melamed
assistente de direção: gabriel bortolini
estagiária de direção: barbara montes claros
direção musical: lucas marcier e fabiano krieger
assistente de direção musical: antonio de padua
percussão “comissão de frente”: fabiano salek
composição “ala dos pontas”: fabiano krieger e michel melamed
mashup “sambicídio”: fabiano krieger, lucas marcier e michel melamed
“hino do pec (partido da educação e cultura)”: edu krieger e michel melamed
offs: michel melamed
off “ala do amor”: clarice falcão e gregorio duvivier
gravações e mixagens no estúdio arpx: lucas marcier e antonio de padua
cenografia e objetos: bia junqueira
assistentes de cenografia: gika vereza e marcele vieira
adereços: dodô giovanetti e eduardo andrade
cenotécnico: moisés cupertino
coordenção de efeitos especiais: daniel araujo
montagem e maquinaria: beto de almeida
iluminação: adriana ortiz
assistente de iluminação e programação de moving lights: felicio mafra
montagem luz: juca baracho
figurino: luiza marcier
assistente de figurino: eliza lima
equipe costura: sônia regina martins, angelina joão amâncio, antônio foicinh, maria teixeira de oliveira, vandete silva.
alfaiate: macedo leal
acrílico: artes e ofícios
acessórios: rodrigo hull
colaboração: luiza calmon, marcela petrus e rodrigo barja
estagiária de figurino: luma cabral
caracterização: rubens liborio
assistente de caracterização: josé luis gonçalves
hair dressing: neandro ferreira
cores: felipe freitas
preparação samba e tango: rachel mesquita e gabriel silva
projeto gráfico: olivia ferreira e pedro garavaglia/ radiográfico
assistente projeto gráfico: monica puga/ radiográfico
ilustrações: mathias cremadez
fotos programa e divulgação: andre mantelli
still: gui maia
assessoria de imprensa: vanessa cardoso/ factoria comunicação
assessoria jurídica: andrea francez e wanda alonso
operadores de som: joão gabriel da costa e joão bandeira
operadores de luz: rita fernandes e adeilson mendes moreira
maquinistas: jaime vieira e reinaldo duarte
brigada de incêndio: atac fire
camareiras: lucia e rita martinusso
contrarregra: rafael monteiro
administração: rafael mose
direção de produção: bianca de felippes
produção executiva: gabriel bortolini
estagiárias de produção: juliane westin e natasha guimarães
realização: chien o criativo, bianca de felippes e michel melamed
patrocínio: fate/ secretaria municipal de cultura/ secretaria estadual de cultura
O Melhor dramaturgo do mundo!
ResponderExcluirTive o desprazer de assistir ontem o espetáculo! Em verdade fui com uma alta espectativa à partir da crítica e me frustei. De fato o elenco merece destaque possitivo bem como o cenário e o jogo de luzes e cores, mas o restante.... Somente consumidores de refinado trato para precepção da proposta pós-dramática deve dar conta de entender. Meros consumidores de cultura como eu não estão prontos para isto. A plateia inteira parecia comunhar da mesma opnião ao expressar risos timidos e ao final aplauso rápido e sem brilho (todos snetados) incluindo a Atriz Mariana Ximenes que se sentou a minha frente e o ator Matheus Nachtergaele a minha direita. Foi uma decepção total para todos.
ResponderExcluirTrabalho com grupos e havia comprado 15 ingressos e para minha sorte resolvi me antecipar a assistir a peça. Uma decepção, digno do que acontece no final da apresentação onde as cortinas se fecham rarissimos aplausos, provavelmente de parente, e os atores desaparecem rapidinhos. Pensei até a cara dos atores pensando como esse pessoal ficou até o fim?
ResponderExcluirAssisti no sesc ontem ( 13.o7.12 ), e realmente no ínicio,fica a impresão de ser um espetáculo confuso, mas no decorrer da peça, nota-se o talendo dos atores e a idéia principal do Michel ( DIRETOR ).Gostei muito e acho que depende do ponto de vista de cada um para julgar, só sei que tem cenas que faz voçê refleti na merda do carnaval e da vida,claro.
ResponderExcluirSou uma apreciadora de obras que se utilizam de metáforas para despertar o raciocínio crítico, mas devo admitir que Adeus à Carne as usa de maneira indiscriminada, quase como fronta ao público. É realmente fácil inventar qualquer coisa e passar a bola para o telespectador, assim o autor não precisa se preocupar com o sentido do que fez. Fiquei bem decepcionada, pois já conhecia os outros trabalhos do Michel Melamed. E clamo, Michel, no próximo trabalho, volte a falar, ok?
ResponderExcluirEm toda minha vida- 29 anos, só assisti duas peças que foram aplaudidas no meio da peça 1º Policarpo Quaresma 2º Adeus a Carne.
ResponderExcluirEsse será um grande diretor, falem absurdos agora, pois num futuro próximo, aplaudirão esse gênio que surgi com sua pegada forte, rápida, alegre, plastica e Brasileira
Não se trata de um espetáculo fácil ou comum, mas vi um publico emocionado no Sesc Santana, não a grande maioria-claro ! Haverá para muitos um tempo de reflexão, para outros um tempo para esquecer, mas não um tempo para criticar o diretor pelo o que a própria pessoa não entendeu, afinal esse tipo de trabalho não é aceito pelo grande publico de imediato (embora o teatro estivesse cheio de olhos atentos), é como dizer que Kabuki,Nô, o teatro de Bali, Odin, Brook ou então a galera que ousa experimentar não são respeitáveis pelo simples fato de que algumas pessoas não entenderam, eu não entendo a literatura de Joyce, mas não vou dizer que ele é isso ou aquilo pois sei da sua genialidade, sei também que não se trata só de entender, mas sentir e muitas vezes agente tem que assistir ou ler mais de uma vez, pois o mundo está cheio de peças e livros comuns que nos condiciona a "não" sentir ou buscar, isso me ocorreu quando me deram um livro do genial Marcel Proust, pelo qual hoje sou apaixonada !. O espetáculo em debate é uma obra cheia de experimentação e sutilezas que contrastam com uma tonelada de trabalho corporal e objetos cênicos, metafórico, mas direto, plastico, ligeiro, ousado... E acima de tudo não, não comercial, muito menos apelativo e ainda nada " lugar comum" .
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