Fotografia: Paula Huven
Belo!
Interpretada brilhantemente por Kelzy Ecard, Carmen é cega. Nós, o público, entramos no espaço destinado à audiência e, pela ausência de cortinas, identificamos o valoroso cenário assinado pela dupla de diretoras Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa e por Aurora dos Campos, que, absolutamente perfeito em todos os aspectos tanto funcionais como estéticos, constrói em todos os detalhes a casa de uma pessoa simples num tempo que passou há algumas décadas. Então, a luz se apaga totalmente e ficamos todos na completa escuridão. É quando começamos a ouvir a voz da personagem citada e, muito gradualmente, poucas luzes, cujas fontes também são diegeticamente justificadas (não há refletores no urdimento), começam a acender apenas possibilitando parciais distinções. Na casa de Carmen, está Aurora, uma jovem que veio ajudá-la no preparo de seu famoso molho de cachorro-quente. Embora a escuridão inicial propiciada pela direção indique o ponto de vista de Carmen, o breu que acontece na sequência e até o fim da narrativa permite que nos identifiquemos com Aurora. Ela vê por nós, o público, e enxerga melhor quando lhe é possível acender algumas velas. O gênero que melhor dá conta de uma obra estética cuja fruição acontece a partir de um personagem (e em que o cenário é incansavelmente fiel a seu similar além da narrativa) é o realismo psicológico. Estamos dentro de Aurora, não sabemos o que sente Carmen, que, aliás, só a identificamos como cega depois de alguns minutos antes dos quais a vimos picar legumes velozmente com uma faca em mãos, além de se movimentar pelo cenário, acender o fogão a gás e trabalhar na cozinha normalmente apesar da fraca luz. O convite é para que viajemos dentro da situação, observando seus discretos movimentos, suas possibilidades, seus encantos.
O texto escrito por Pedro Brício não tem a sua força na sucessão de acontecimentos, mas na partilha de reações, aspirações, impressões, sendo bastante rico em sua inteligente sensibilidade. Duas mulheres de idades diferentes que não se conhecem dividem o mesmo espaço: uma precisa de dinheiro e a outra precisa de ajuda no trabalho. Conversam, então, para passar o tempo, para se conhecer e, quanto mais sabem uma da outra, ou melhor, quanto mais Aurora (nós) conhece Carmen, mais presa está à situação, mais ligados estamos nós à história (Carmen não mostra ser dependente de Aurora em nenhum momento, embora seja possível reconhecer como valiosa a companhia que a outra que lhe fez.). A evolução chega em um ponto em que a mais jovem já não pode mais se afastar da mais velha sem culpa: o vínculo está estabelecido, a relação plena. Uma vez que “Breu” é uma obra artística assinada e patrocinada por profissionais talentosos e respeitáveis, pode-se estar certo de que nada é por acaso, mas mérito de quem tão bem arregimentou os signos a ponto de serem suas relações acessíveis e, por isso, “dizerem” tanto para quem lhe assiste.
Em se tratando dos méritos, há que se começar pelas interpretações das atrizes, porque é nelas que está o poder e o ato de transformar todos os demais elementos em teatro. Ecard exibe grande domínio de técnica na forma como se movimenta pelo espaço cênico mantendo os olhos fechados, no jeito como fala e ouve e, sobretudo, na sutileza das reações, que emociona pela seriedade com que se vê a construção. Aurora vai conhecendo Carmen aos poucos e essa dosagem, estabelecida por Brício e por Campos/Yanagizawa, é apresentada de um jeito sutil, intimista, extremamente próximo do real além da narrativa. Assim como Horta, Ecard positivamente se esforça em apagar marcas da ficção, aproveitando-se positivamente da proximidade do público e articulando as palavras como se não houvesse ninguém ali além da atriz com quem contracena. Ao seu lado, Horta obtém, em todos os aspectos, os mesmos excelentes resultados, estando na possibilidade do humor o equilíbrio que sua construção apresenta em relação à cegueira de Carmem. Em várias passagens, o público se diverte diante da interpretação não menos delicada da jovem atriz, o que é um feliz exemplo das possibilidades dramáticas da obra como um todo.
Ainda sobre os méritos, os aspectos plásticos demonstram o extremo bom gosto da equipe técnica de “Breu”. Os figurinos de Flávio Graff são coerentes com a concepção do texto e da encenação, auxiliando na construção da ideia de tempo e na caracterização dos personagens de forma interessante. A iluminação de Tomás Ribas proporciona momentos visuais bastante harmônicos em perfeito casamento com o cenário já elogiado. A trilha sonora de Felipe Storino é sutil e delicada, enaltecendo, mais para o final da apresentação, sozinha a evolução da narrativa, o que é um aspecto negativo na direção de Campos e de Yanagizawa.
O ritmo da encenação se estabiliza negativamente a partir da cena em que Aurora, que havia partido, retorna para a casa de Carmen, já próximo do fim da peça. O diálogo que, como já se falou, demonstra um forte empenho das intérpretes no sentido de apagamento das marcas de teatralidade, evolui sem modificar o desenho narrativo, mantendo uma prejudicial, porque facilmente tediosa, linearidade. O resultado é que, com as cenas construídas tão próximas da realidade além da narrativa, parece que estamos diante de um jogo de improvisação. O final chega sem preparação, como se chegasse simplesmente porque tem que chegar, o que poderia ser positivo se estivéssemos diante de uma obra sem tanto apelo à catarse como é o caso. Dessa forma, o final, que acontece em um ambiente além da casa, tão bonito como o seu interior, acontece coroando visualmente o belo espetáculo que se viu, mantendo as grandes interpretações das atrizes Ecard e Horta, mas abdicando do ápice que emocionaria inclusive pela sutileza do texto de Brício, de cujas personagens nos despedimos, certo de que elas estão juntas.
*
Ficha técnica:
Texto: Pedro Brício
Elenco: Andréia Horta e Kelzy Ecard
Direção: Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa
Assistência de Direção: Liliane Rovaris
Cenário: Aurora dos Campos, Maria Silvia Siqueira Campos e Miwa Yanagizawa
Assistente de Cenário: Camila Cristina
Iluminação: Tomás Ribas
Assistente de Iluminação: Camilo Soudant
Operador de Luz: Vilmar Olos
Figurino: Flávio Graff
Assistente de Figurino: Junior Santana
Costureira: Odília Almeida
Trilha Sonora: Felipe Storino
Operador de Som: Telma Lemos
Contra-regra:Raoni Leher
Programação Visual: Felipe Nuno
Assessoria de Imprensa: Mina de Ideias
Direção de Produção: Laura Castro e Marta Nóbrega
Produção Executiva: Isabel Pacheco
Equipe de Produção: Nathalia Atayde e Renata Peralva
Produção: JLM Produções Artísticas e Siqueira Campos Produções
Patrocínio: Banco do Brasil
Realização: CCBB
É uma ótima peça, entramos no mundo do Breu, Parabéns.
ResponderExcluirRecomendo!! ótima peça e ótimas atrizes.
ResponderExcluir