terça-feira, 24 de janeiro de 2012

As Mimosas da Praça Tiradentes (RJ)

Foto: divulgação

Orgulho de ser nacionalmente bairrista

                 “Com “As Mimosas da Praça Tiradentes”, Gustavo Gasparani dá continuidade ao trabalho, iniciado há seis anos de pesquisa e busca por uma dramaturgia genuinamente brasileira para musicais,”* essa abandonada, infelizmente, nos tempos da ditadura por conta do militarismo/tecnicismo norte-americano que, chegando às salas de espetáculos, varreu o que restava do teatro de revista, dando lugar ironicamente ao teatro ideológico. Desde então nacionalmente conhecidos são apenas os musicais de Chico Buarque, entre eles, “Ópera do Malandro” e “Gota d’água”, ambos carregados de posicionamentos políticos, mas célebres pela revitalização da boa e velha “revista” nacional. Felizmente, o cenário artístico teatral começa a mudar quando, da versão brasileira de “Company” pra cá, Cláudio Botelho e Charles Moeller, Jorge Takla e Miguel Falabella têm consolidado o terreno para a produção de comédias musicais, em especial os clássicos da Broadway, reunindo um público cada vez mais crescente e formando atores que também cantem e dancem, cantores que também interpretam e dançam e bailarinos que também cantem e interpretem. O mais importante mérito do trabalho desse grupo de realizadores é, sem dúvida, a conquista de patrocinadores que, vendo a receptividade do público, possibilitam casas de espetáculos adequadas para o gênero e alimento as suas produções: cenários, figurinos, maquinaria, produção. Aos poucos, pessoas valiosas como Gasparani começam a surgir e o gênero musical volta a se encontrar com o Brasil verdadeiramente. E cá estamos.
                Engana-se quem pensa que “As Mimosas da Praça Tiradentes” é um espetáculo sobre a Praça Tiradentes. Quem não leu nada sobre a peça, nem mesmo o programa entregue na entrada, tem ao seu dispor instrumentos necessários para desfazer essa compreensão tão logo as cortinas se abrem e os painéis deixam de ser fotografias editadas, a escadaria deixa de ser uma longa escada e as cortinas deixam de ser tecidos de veludo molhado a cobrir espaços não-revelados. Quando o primeiro ator entra em cena, os signos tornam-se signos teatrais e o real tema do espetáculo surge eficientemente tanto no que diz respeito à forma como, principalmente, ao conteúdo: o Brasil. É hora, então, de abandonar os pré-conceitos (conceitos construídos antes da peça começar) e assumir participativamente os conceitos: o teatro, afinal, se expressa através de uma linguagem que se estabelece junto com os falantes, sendo a única arte em que o artista e sua obra precisam conviver no mesmo espaço durante o tempo da apresentação para existir. Que Brasil é esse?
                Escrito por Gasparani e Eduardo Rieche, o Brasil de “As Mimosas da Praça Tiradentes” está no deboche, na ironia escrachada, na força criativa da bagunça brasileira, esses todos elementos que salgam a boca de qualquer yankee ou europeu e os fazem, ao mesmo tempo, se apaixonar por nós, aparecendo tanto na malemolência do roteiro positivamente superficial, quanto na ilógica estrutura que alterna momentos encadeados de forma clara e substituições repentinas. Para citar algumas marcas, basta recuperar três entre várias cenas memoráveis: 1) Entra a Mulher Maravilha com uma capa esvoaçante. De nada serve a capa se não há vento. Então, entram bailarinos munidos com ventiladores cor de rosas ligados, enquanto dois atores balançam com as próprias mãos a capa da super-heroína; 2) Dom Pedro I entra cantando o Hino da Independência, vestido a la alegoria de carnaval da Sapucaí. Seu figurino, então, se torna o de Tiradentes, com luzes horizontais acesas por baixo do manto; 3) Poemas clássicos da nossa literatura são rasgados e cenas de Shakespeare e de Martins Pena são deturpadas. Ou seja, 1) a criatividade brasileira é arma irredutível na resolução de problemas emergenciais, criticando a existência dos mesmos, sem perder o bom humor; 2) a consciência histórica do brasileiro, infelizmente, é assumidamente falha, essa expressa em quão pouco sabemos dos acontecimentos que marcaram a formação do nosso país e em quão afoitos somos à demonstração de patriotismo em relação a vários outros países; e 3) Aqui, com muita facilidade, tudo vira samba, tudo vira festa, tudo vira carnaval. O Brasil, a cultura brasileira, não necessariamente apenas a carioca, está, afinal de contas, na carnavalização, termo que não surgiu com as marchinhas, com as escolas de samba e com os blocos, mas vem de Nietzsche e de Bahktin, estudiosos, entre outras coisas, do teatro, das sociedades e das relações humanas no longo período da Idade Média. Carnaval aqui quer dizer se utilizar de uma máscara qualquer para se encontrar livre de qualquer culpa ou de comportamento pré-determinado, estando livre para criticar, para brincar, para avançar limites. Sobre “As Mimosas da Praça Tiradentes”, haverá quem diga inadvertidamente que o espetáculo é a visão gay de uma parte da história do Rio de Janeiro. Mas, com certeza, haverá também quem se lembre de que, em todos os carnavais do mundo, é comum homens se vestirem de mulheres e mulheres se vestirem de homens, completamente absolvidos pela energia criativa que permite, nos dias que antecedem o início da quaresma, brincar de ser quem quer que seja. Não é à toa, vale lembrar, que “gay” significa “alegre” e que está, no cerne da palavra carnaval, a palavra carne. Tampouco que o Brasil é o país do Carnaval e que o Rio de Janeiro, antes de ser uma cidade ou um estado, é o Brasil que as cinco regiões vêem pela TV diariamente. E é por tudo isso que, em termos de dramaturgia, o segundo ato é profundamente melhor do que o primeiro.
                O roteiro é uma versão adaptada de “Burlesque”, esse também uma versão adaptada de “Cabaret” e de “Moulin Rouge”, ambos, por sua vez, versões adaptadas de diversas outras fontes, e reinventar bem é tão importante quanto inventar. Eis o mote: o Cabaret das Mimosas, casa célebre por seus shows de travestis na Praça Tiradentes, está para fechar suas portas diante de tantas dívidas acumuladas fracasso após fracasso desde que partiu para a Europa a estrela da companhia, a inesquecível Divina Rúbia. Por trás dessa condenação, sabem os personagens e sabe o público que está o interesse financeiro local em demolir o edifício e construir um estacionamento, pondo fim a mais uma parte importante da história da Praça Tiradentes e do teatro carioca. O Professor Lourival (Claudio Tovar), que dá aulas de história na universidade, é o diretor do estabelecimento, interpretando “Lola, a imperatriz” nas horas de show. Para tentar uma última cartada em prol do salvamento do seu negócio, ele resolve montar um espetáculo que conta a história do endereço, trazendo à tona a importância cultural dele para a arte nacional. Tatá ou “Samantha Overbook” (César Augusto), Xuxu ou “Catula de Montecarlo” (Milton Filho), Vânia ou Vanilson ou “Vanilla Cherry (Gustavo Gasparani) e Miguelito ou Miguel (Jonas Hammar) são os artistas que ajudam o diretor na construção desse espetáculo dando opiniões diversas a respeito do seu andamento. Tanto no primeiro ato como no segundo, as cenas de ensaios dos números vão se configurando como os próprios números apresentados, de forma que há, na encenação dirigida por Gustavo Gasparani e Sérgio Modena, perfeito e claro movimento entre os acontecimentos do palco e da coxia diegética. No entanto, observa-se que, no primeiro ato, as cenas didáticas, em que são dadas constantes e desnecessárias explicações a respeito do motivo que move a produção do espetáculo fictício, são longas, pesadas, cansativas e, por vezes, monótonas. O interessante é notar que esses desvalores são justamente o que os personagens reivindicam com Lourival acerca da peça que ajudam a construir: todos querem mais movimento, mais graça, mais vivacidade no roteiro da peça. Assim, ironicamente, Tatá, Xuxu e Vânia pedem a Lourival o que nós pedimos a Gasparani e Rieche: menos blá blá blá e mais ação: em vários momentos, nos primeiros minutos especialmente, o cenário parece grandioso demais, porque o encadeamento das cenas ocorre em ritmo lento. Além disso, os personagens são apresentados e reapresentados e os conflitos internos de cada um deles ganham sequências inteiras, as quais, felizmente, não existem no segundo ato, possibilitando a essa parte uma avaliação substancialmente mais positiva. Após o intervalo, atores e público estão diante de fluídas sequências narrativas, números musicais (canto e dança) exuberantes e cenas cômicas bem brasileiras: o Brasil está definitivamente em cena, tanto na boca como nos corpos dos intérpretes. Tudo isso, claro, com uma longa escadaria iluminada, luzes caindo do teto, figurinos brilhantes e um corpo de baile composto de bailarinos semi-nus exibindo corpos sarados para o delírio visual da plateia.
                Claudio Tovar, Milton Filho e Gustavo Gasparani brilham irredutíveis nos papéis mais vivos da encenação. Seus diálogos são rápidos, suas aparições são marcantes, seus envolvimentos com os demais elementos cênicos são ágeis. Marya Bravo, filha de Zé Rodrix, dá vida para “Divina Rúbia”, aquela que vem salvar o Cabaret das Mimosas. Com uma voz potente e grande carisma, a atriz é responsável por grandes momentos de “As Mimosas”, como “I am what I am” e “Dreamgirls”. César Augusto, porque seu personagem não tem um desenho qualificado da dramaturgia no primeiro ato e está completamente esquecido no segundo, e Jonas Hammar, porque sua interpretação sustenta poucas marcas de ironia, agilidade e verossimilhança, infelizmente, não atingem os mesmos bons resultados que os demais com quem contracenam. O conjunto de bailarinos está excelente, trazendo para o palco as rígidas coreografias das extravaganzas norte-americanas, mantendo, positivamente nas expressões faciais, a brincadeira brasileira que dá caldo para o espetáculo como um todo.
                Cada nova cena é um acontecimento estético em “As Mimosas da Praça Tiradentes”, o que não poderia deixar de ser em se tratando de um grandioso musical (Ufanismos à parte, em nada o Brasil deixa a desejar ao gênero tipicamente americano aqui rebatizado e construído com os nomes de “teatro de revista”, “gênero livre” e “chanchada”, entre outros termos.). Os figurinos de Marcelo Olinto e sua equipe estão impecáveis, como também o cenário de Ronald Teixeira e a iluminação de Paulo César Medeiros. A direção musical de João Callado e de Nando Duarte e as coreografias de Renato Vieira agem tão fortemente articuladas com os demais elementos que é difícil imaginar como, na plateia, alguém não consiga ser fisgado pela estrutura construída no palco. Se cada relação significativa proposta pela obra estética é um argumento em favor da fruição, “As Mimosas da Praça Tiradentes”, ainda que demore meio ato para nos convencer, atinge com galhardia o feito.
                É comum ouvir dizer que os gaúchos são bairristas porque expressam, preferencialmente em forma de humor, a sua admiração pelo Rio Grande do Sul. Na plateia do Teatro Carlos Gomes, tem-se a certeza de que os cariocas são, sem dúvida, tão bairristas quanto os rio-grandenses. A diferença é que, no Rio de Janeiro, amar a cidade significa amar o país e, como todo gaúcho é também brasileiro, descobrir-se duplamente bairrista na audiência de “As Mimosas” é uma feliz conseqüência.


*Texto retirado do programa do espetáculo.   
               
Ficha técnica:

Elenco: Claudio Tovar, Jonas Hammar, César Augusto, Milton Filho, Gustavo Gasparani e Marya Bravo
Boys: Arthur Marques (ensaiador), Paulo Mazzoni, Pedro Arrais, Thadeu Mattos, Thiago Pach e Wallace Ramires
Músicos: Nando Duarte, Itamar Duarte, Pedro Mangia, Carlos César e Dado
Texto: Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche
Direção: Gustavo Gasparani e Sérgio Módena
Direção Musical e Arranjos: João Callado e Nando Duarte
Direção de Movimento e Coreografia: Renato Vieira
Cenário: Ronald Teixeira
Figurino: Marcelo Olinto
Iluminação: Paulo César Medeiros
Visagismo: Beto Carramanhos
“Auxílio Luxuoso”:  Leonardo Netto
Pesquisa musical: Rodrigo Faour, Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche
Preparação Vocal: Maurício Detoni
Projeto de Som: Branco Ferreira
Assistente de Direção: Juliana Medella
Segundo Assistente de Direção: Henrique Lott
Direção de Produção: Alice Cavalcante
Produção de Elenco: Marcela Altberg
Projeto Gráfico: Mary Paz Guillén
Assessoria de Imprensa: Mary Debs
Produção Executiva: Luana Cabral
Produtor Assistente: Renato Oliveira
Adminstrador: Felipe Argollo
Diretor de Palco: Marcos Lesqueves
Operador de Som: Thiago Silva
Operador de Luz: Rodrigo Emanuel
Equipe de Maquinistas e Contra-regras: Beto Almeida, Carlos Elias e Nahin Fernandes
Maquiadores/Peruqueiros: Felipe Espíndola e Raquel Oliveira
Microfonista: André Cavalcanti
Operador de Canhão: Lúcio Bragança e Willian Lima
Idealização e Realização: Gustavo Gasparani

2 comentários:

  1. Achei o espetaculo deslumbrante,sao duas horas fantasticas em que voce (seja certo ou errado, assim como diz o critico) podemos entender o que foi e sera sempre a Praça Tiradente)os atores estao deslumbrantes, os cenários, figurinos é tudo de bom a euipe de músicos tem arranjos memoraveis e tributos aos nossos grandes icones tanto do teatro de revista como da música. Comcerteza sera um grande passa tempo, nao pergam beijos

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  2. Maravilhoso espetaculo, além da real historia da Praça Tiradentes e seus personagens, alguns ainda vivos em nossa memoria, posso dizer que ao encerrar o espetaculo pude gritar BRAVOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO

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