sábado, 21 de janeiro de 2012

A propósito de Senhorita Júlia (RJ)

Foto: divulgação

Sem justificativas

                Dostoiévski está para Machado de Assis assim como Strindberg está para Plínio Marcos. E nem Patrick Marber (autor de “Closer”), nem José Almino são Plínio Marcos infelizmente. “A propósito de Senhorita Júlia, versão (não apenas tradução) de Almino para “After Miss Julie”, de Marber, é apenas uma vaga, mas aproveitadora lembrança de “Senhorita Júlia”, escrita em 1888 por Auguste Strindberg (1849-1912) porque, tanto uma como a outra, se utilizam dos nomes dos personagens, de suas posições actanciais na narrativa e de boa parte dos diálogos, mas constroem um espetáculo cujos ganchos dramáticos são completamente diferentes. Expoente do Realismo Naturalismo na Europa, como Plínio Marcos é no Brasil, Strindberg, também autor de “Os Credores”, cria uma situação em que os personagens estão suscetíveis às emoções e incapacitados de utilizar a razão. É noite de São João, uma festa que “sobreviveu aos tempos pagãos”, como diz no texto. O álcool, o cansaço do dia de trabalho, a música, a comida, o calor, o sexo são os elementos que pairam sobre os corpos que conversam, se excitam, se aguçam, se provocam e se satisfazem. Julia é filha do dono da casa, Jean é o emprego e Kristin é a cozinheira, sendo esses últimos, noivos um do outro. O poder passa de mão em mão: o dinheiro, a beleza, a sensualidade e as expectativas são o que importa nessa madrugada cujos participantes não podem ser julgados como mocinhos ou vilões, culpados ou vítimas, responsáveis ou cúmplices porque são apenas animais ainda despertos pelos próprios extintos. Quando, lá pelas tantas, na plateia do espetáculo dirigido por Walter Lima Jr., ficamos com pena de Cristiane (Dani Ornellas), na cena em que ela descobre que Moacir (Armando Babaioff) e Júlia (Alessandra Negrini) estão na cama dele, confirmamos que estamos muito distantes de Strindberg e, talvez, mais próximos de Pinter, mas inevitavelmente, numa adaptação com vários problemas.
                Em cena, o jogo não acontece por um problema básico: a bola tem dono, isto é, do início ao fim, é Babaioff, felizmente o personagem dele, quem domina a situação. Embora haja alguns momentos em que, em seu trabalho de interpretação, o ator parta pra cima de Negrini com marcas de excitação (rapidez, força, respiração galopante), a situação está tão fortemente construída de forma a dar a ele o privilégio da cena, que não é possível acreditar que Moacir está mesmo se deixando levar por Júlia. Quando ele a agarra, temos a impressão de que é premeditado e a falha é da direção que não equilibrou o jogo cênico de forma inteligente. Moacir, o chofer do pai de Júlia, um deputado, não ama nem Cristiane, a cozinheira evangélica, sua noiva, nem Júlia, com quem crescera na mesma casa ainda que em alas opostas, ela na entrada social e ele na de serviço. Ele ama a si mesmo em sua ambição, em sua vontade de ser alguém. E é também nisso que está um dos grandes bons valores que Babaioff traz para essa produção.
                Armando Babaioff, que recentemente esteve na produção “Na solidão dos campos de algodão”, texto de Bernard-Marie Koltès e direção de Caco Ciocler, apesar de aqui mal dirigido, é o que consegue os melhores resultados em cena. Sua presença é forte e sua retórica tem marcas de determinação (ritmo não linear, pausas pontuais, olhares assertivos. Além disso, o ator dá a ver uma construção cuja humanidade consegue ultrapassar a ambição e (está no aspecto humano a base amoral para a selvageria strindberguiana) alcançar, assim, um terreno confortável para se estabelecer na narrativa. Em outras palavras, em alguns momentos, conseguimos entender Moacir como, sim, um homem sem escrúpulos, mas, ao mesmo tempo, o salvamos da penitência diante da vida sofrida que o personagem levou até ali. Condenação e posterior absolvição resultam na amoralidade, mais forte instrumento do drama realista naturalista. Os erros da direção se mostram na dificuldade do ator de parar quieto no palco. Faltam silêncios no trabalho de Babaioff que fala com as mãos, com os pés, com o corpo e com o discurso verbal de Strindberg/Marber/Almino, o que colabora para um ritmo frenético e pouco orgânico da encenação de Walter Lima Jr.
                Alessandra Negrini não tem um único momento interessante em “A propósito de Senhorita Júlia”. Sem nenhum carisma (olhares vazios e tom de voz quase monocorde) e quase nada de sensualidade (não se vêem diagonais no seu trabalho de movimentação, suas expressões carecem de ironia e seu discurso não viabiliza segundos sentidos que seriam valiosos para a trama). Com 41 anos, faltam marcas de verossimilhança na interpretação da personagem quase vinte anos mais nova: sua Júlia não é vítima da noite e da bebida que aguçou os sentidos e, por isso, deveria estar agora em meio a uma situação sem valores totalmente dispersa pelo prazer dos sentidos. A Júlia de Negrini quer vingar-se da própria vida – seus pais não planejaram seu nascimento, sua mãe a ensinou comportar-se como um menino, seu noivo acabou de abandoná-la e seu dinheiro faz com que os homens tenham medo dela e não se aproximem desarmados. O que deveria ser apenas grades que justificariam seu aprisionamento na situação dramática, serve negativamente, nessa concepção de interpretação, como justificativas stanislavskianas para as ações da personagem (Stanislavski atende ao Realismo Psicológico de Dostoiévski, de Ibsen e de Machado de Assis. Não há lógica em Strindberg, Plínio Marcos, Aloísio Azevedo e Zolá.)
                Dani Ornellas, que interpreta a ótima Cristiane, um dos grandes personagens da literatura dramática universal, sofre na concepção que 1) faz com que sua personagem veja que está sendo traída e saia de cena em prantos; 2) tenha nojo de Júlia, reagindo a ela após julgar (moralmente) seu comportamento; e 3) fique com o dinheiro do pai de Júlia, mesmo que seja possível pensar que ela irá devolvê-lo a seu dono. Entre outros, as novidades trazidas ao texto original, se por Marber, se por Almino, se por Walter Lima Jr., fazem diminuir as nuances de Kristin, que não tem ciúmes de Jean com Julie, mas possivelmente vê nisso uma possibilidade de lucro (novamente: condenação mais absolvição é igual amoralidade). A atriz oferece bom desempenho em cena: está comedida, discreta, mas também forte. Sua dicção é boa, seus movimentos são claros, suas intenções são acessíveis e, sem dúvida, exibe muito mais sensualidade do que Negrini.
                Nos aspectos técnicos, o cenário de José Dias está esplêndido. A cozinha em perspectiva, com o ponto de fuga renascentista na estrutura em madeira, faz aumentar a sensação de humanidade (que deveria haver na construção de todos os personagens), apesar dos copos e taças de plástico que agridem a produção realista. O fundo finito, uma liberdade poética, oferece beleza sem prejudicar. Quanto aos figurinos de Angèle Fróes, deve-se dizer que são pontuais no caso de Moacir e de Cristiane, mas problemáticos no caso de Júlia, que parece mais velha e ainda menos sensual (principalmente, a última roupa.). A trilha sonora de Walter Lima Jr. e de Paulo Mendes e a iluminação de Daniel Galván estão adequadas.
                Em arte, não há jeito certo ou jeito errado de produzir uma obra, mesmo quando essa obra é uma releitura de uma anterior a ela. O caso é que, diferente da linguagem verbal, não há gramática na arte, embora haja morfologia e sintaxe. Assim, tudo o que vemos em cena é signo, signos que fazem relação com outros signos e neles encontram justificativas para a sua existência. Quando as justificativas são escassas, o resultado tende a ser negativo. Como aqui é o caso, apesar das pontuais e bem-vindas exceções.


*

Ficha técnica:

Texto: (no programa estranhamente consta) August Strindberg
Direção: Walter Lima Jr.
Adaptação: José Almino e Walter Lima Jr.
Elenco: Alessandra Negrini, Armando Babaioff e Dani Ornellas
Direção de produção: Gustavo Nunes
Cenografia: José Dias
Figurinos: Angèle Fróes
Iluminação: Daniel Galván
Trilha Sonora: Walter Lima Jr.
Sonoplastia: Paulo Mendes
Direção de movimento: Ana Bevilaqua
Assistente de direção: Isabel Guéron
Assessoria de Imprensa: Alan Dinize Sidimir Sanchez – Uns Comunicação
Design Gráfico: Bigodes – Bárbara Emanuel e Luiz Henrique Sá
Cenotécnico: Paulo Fernandes – Serpa Fernandes Cenografia, Artes e Eventos
Assistente de Cenografia: André Sanches
Assistente de Figurino: Fernanda Theophilo
Equipe de Montagem de Luz: Cristiano Cassio, Marquinhos Braga, Luiz Sartomen e Valéria Gonçalves
Diretor de Cena: Felipe Avila
Contra-regra: Otávio Barbosa e Sandro Souza
Operador de Luz: Luiz Sartomen
Operador de Som: Gutto Dutra
Camareira: Vanessa Silva
Produção: Turbilhão de Ideias Cultura e Entretenimento

3 comentários:

  1. Olá Rodrigo, acabei caindo pela segunda vez em seu blog, li sua crítica e fui assistir DisneyKiller. Concordo com sua visão em diversos aspectos, fiquei feliz em encontrar no seu texto aprofundamento e personalidade. Parabéns pela iniciativa do blog.

    Abraços

    Ana Cecilia Reis

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    1. Concordando ou nao, eh tao bom qdo podemos manter de peh a discussao... Dah a impressao de que o teatro dura um pouquinho mais do a o tempo da representacao... Volta sempre, Ana! Abracao!

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  2. Vi a peça " A propósito de Senhorita Júlia" na sexta-feira no Imperator, Méier, Rio de Janeiro. Saí do teatro frustrada, cansada: texto arrastado, interpretação em um único tom. Teve momentos que me prendi mais ao cenário do que ao diálogo.
    No entanto, quero pontuar o seguinte: busquei na Internet outras leituras da peça, considerando que eu não tive sensibilidade suficiente para perceber a possícel beleza do trabalho teatral.Bom, pelo que li, não foi uma incapacidade minha. O trabalho deixou a desejar.
    Mas, vamos combinar? Essa postagem no blog tá mais para texto acadêmico, do que crítica teatral. Eu achei enfadonho ver a peça e ler a crítica.
    Agradeço porque me fez perceber que não fui insensível e deixo a dica de que blog não é trabalho da faculdade.

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