sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Latidos (RS)

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Foto: Diogo Vaz

Catharina Conte e Nora Prado


O áureo início de 2018 no teatro gaúcho

É muito provável que “Latidos” seja a melhor peça de Julio Conte desde “Balei na curva”. A produção, que estreou nessa semana no 19o Porto Verão Alegre, integra de maneira gloriosa a abertura do ano de 2018 no teatro gaúcho. No texto, encontram-se o amadurecimento de seu autor como célebre dramaturgo e diretor do mais importante espetáculo teatral do sul do Brasil e também a experiência dele como psicanalista renomado. Nora Prado e Catharina Conte interpretam Virgínia e Valentina, mãe e filha, alguns dias depois do falecimento do homem que foi marido da primeira e pai da segunda. O acontecimento é uma oportunidade para elas de ressignificarem toda a relação que lhes sobra, o que na narrativa é convite para o público de refletir sobre suas próprias relações. Eis dois belíssimos trabalhos de atuação que, entre outros méritos, fazem dessa proposta uma obra imperdível.


Excelente dramaturgia
A peça inteira é estruturada em uma única cena cujos diálogos acontecem no palco usando a mesma passagem do tempo de fora dele. Isto é, não há elipses, flashbacks e nem apartes no tempo ficcional, embora a narrativa se passe em um café da manhã e a encenação se dê à noite. O cenário é uma faustosa mesa posta para um desjejum de luxo, em que se expressa que as personagens são membros da classe alta da sociedade. No cenário, não há saídas, não se usa a coxia, não há intervalos e nem respiros. “Latidos” começa depois de um pequeno prólogo em que Nora fala ao telefone com a empregada porque não encontra guardanapos de linho que ela queria para deixar a ocasião mais especial. Quando Valentina entra e reprova todo o espetáculo feito pela mãe, o público entende que o conflito já começou.

De um lado, há Virgínia, vestida para o trabalho, mas interessada em fazer com que a filha coma alguma coisa, começando a superar o luto pela morte do pai de modo mais digno. De outro, há Valentina, de cabelos desgrenhados e disposta a recusar qualquer oferta de aproximação da mãe, que praticamente teria abandonado o marido convalescente. O aspecto frívolo da burguesa Virgínia faz dela uma vilã inicial, mais preocupada com as aparências e pouco dada ao que realmente importa na vida. No entanto, o comportamento de Valentina revela um enorme descontrole emocional, deixando ver uma certa inabilidade da jovem de reconhecer os desafios da vida prática. Assim, no texto de Julio Conte, o duelo strindberguiano se inicia. Há um ringue com dois lutadores de peso e eles só poderão sair da partida quando houver um vencedor: é tudo ao vivo, a cores, sem mágica e nem efeitos especiais. Um realismo naturalismo no seu auge mais pleno.

Com excelente fluência tanto na articulação das imagens simbólicas que as palavras promovem como também das próprias palavras e do modo como elas se organizam em frases nas peles das personagens, o texto convida para o mergulho. Acompanha-se o ponto de vista da filha e depois do da mãe sobre a morte do pai e do marido, sobre a vida delas com ele, sobre suas perspectivas sobre a mulher na sociedade contemporânea. Repleta de golpes, a narrativa se organiza com vistas a manter a atenção fisgada e o interesse pleno em uma evolução constante de atmosferas diversas e climas variados. Enquanto assiste, a audiência define o seu lado, organiza sua torcida, avalia seu lutador e pode mudar de preferência. Todos esses adjetivos são marcas do quanto o texto é bem escrito.

“Latidos”, na dramaturgia brasileira contemporânea, está ao lado dos elogiados “Silêncio”, “Os sapos”, “Galápagos” e “War”, de Renata Mizrahi; “Boa noite, professor”, de Lionel Fischer e de Julia Stockler; e “A tropa”, de Gustavo Pinheiro. Em todos esses, se vê o interior do humano servindo como espaço onde o externo se resolve ou é extirpado: entranhas pra fora, fantasmas à solta, a busca pessoal e particular pela luz, ainda que essa não signifique necessariamente perdão e muito menos redenção.

Ao final, quando a própria luta se vê adversária de si mesma, Virgínia e Valentina oferecem suas últimas cartadas e o júri poderá se reunir e decretar a vitória. A virgem ou a valente? Aquela que não se deixou tocar pela corrupção ou aquela que a enfrentou cara a cara? Em volta de ambas, o mundo suspenso continua a correr e o futuro já se aproxima. O realismo naturalismo segundo o qual somos todos animais desprovidos de moral diante do levante dos desejos da carne faz ouvir os latidos de cães. Cães latem quando querem ou precisam de atenção, mas também quando estão com medo. “Latidos” é excelente!

Duas memoráveis interpretações: Nora Prado e Catharina Conte
A direção de Julio Conte, assistido por Fernanda Moreno, faz a encenação brilhar a partir dos méritos já trazidos pelo texto. Embora “Latidos” não tenha cenas, sua evolução espetacular bem pode ser analisada a partir de quadros. As duas personagens apresentam, cada uma, duas versões de si mesmas, o que oferece à peça, pelo menos, quatro opções. Virgínia se defende a partir de uma fleumática composição cheia de gestos, entonações e ironias, como que se apoiando em uma versão de si capaz de agredir sem sofrer, própria para a luta sem dor. Há, no entanto, também, uma outra Virgínia mais dócil, mais cansada, mais íntima que surge como mais um argumento seu após os outros terem falido. Valentina, por seu turno, tem sua versão enlouquecida - agressiva, descontrolada, feroz -, mas também outra: intensa, corajosa, atenciosa e humana. As múltiplas misturas entre essas versões surgem na estrutura de cada entrecho, produzindo um panorama rico e variado de possibilidades.

Em “Latidos”, o público fica sentado no entorno da grande mesa de café da manhã. Essa disposição do espaço ratifica o compromisso da obra de se organizar como em um ringue, mas, mais que isso, oferece à audiência um meio de fruir o espetáculo da perspectiva de dentro. Virgínia e Valentina não são seres distantes do público, mas metáforas dele e de suas complexidades. A proximidade garante a participação em uma abordagem que celebra a natureza dos personagens mais do que o recorte narrativo de que elas são vítimas. Em outras palavras, a peça defende que, se o que temos do outro é apenas uma parte, o mundo tem também apenas uma parte de nós e é contra isso que devemos lutar. Eis uma direção firme e eficaz que concebe o quadro, mas também o viabiliza a partir de termos práticos e concretos.

Nora Prado (Virgínia) e Catharina Conte (Valentina) brilham em cena através de belíssimas atuações. Em ambas, se veem excelentes mobilizações do corpo e das expressões em prol da construção de figuras complexas. Há que se elogiar a movimentação pelo espaço e pelo tempo na condução de ritmos e de formas que chegam à estreia como se já positivamente fosse um espetáculo maduro. Isso faz crer acerca dos benefícios de um processo competente de preparação que valoriza o público e saúda o bom gosto da audiência, a seriedade do feito e o compromisso com a qualidade. Sem dúvida, tem-se aqui interpretações memoráveis que já antecipam aos olhos mais atentos o reconhecimento que hão de colher na carreira longa que a produção há de ter nos palcos brasileiros.

Excelente espetáculo!
Para além do texto, da direção e das interpretações, é preciso que se destaque o modo vibrante com que a luz de Fabiana Santos, o figurino de Fenanda Bastos Vieira, a sonoplastia de Kevin Brezolin e o cenário de Juliana Beltromi colaboram com o mérito geral do trabalho. Em todos esses aspectos, veem-se facilmente o extremo cuidado com cada detalhe, a preocupação com as consequências estéticas de todas as inserções e o compromisso na participação da parte no todo. Com certeza, a fluência semântica com que o espetáculo se desenvolve tem nesses aspectos suas justificativas mais essenciais.

Junto de “Pequeno trabalho para velhos palhaços”, dirigido por Adriane Mottola a partir de texto de Matei Visnièc, “Latidos” abre a temporada teatral gaúcha de 2018 com muitos elogios. Considerando os tempos negros que vivemos na produção artística brasileira em função da crescente redução de políticas públicas que favoreçam a arte, trata-se aqui de uma exceção vitoriosa de furo de bloqueio. É preciso aplaudir, é fácil valorizar, é essencial manter. Parabéns!

*

Ficha técnica:
Texto e Direção: Júlio Conte
Elenco: Nora Prado e Catharina Conte
Assistência de Direção: Fernanda Moreno
Foto: Diogo Vaz
Iluminação: Fabiana Santos
Sonoplastia e Projeções: Kevin Brezolin
Produção Executiva, Assessoria de Imprensa e Social Media: Gustavo Saul
Coordenação de Produção: Patsy Cecato
Figurinos: Fernanda Bastos Vieira
Cenografia: Juliana Beltrami
Realização: Complexo Criativo Cômica Cultural
Apoio: Pâtissier - Marcelo Gonçalves, Juliana Beltrami Eventi, Mobel e Dancing Days
Duração: 60 min

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