sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

Lembranças do lado dourado (RS)

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Foto: Filippo Di Santo Junior

Paulo Vicente, Ciça Reckzieguel e Cláudio Benevenga


Na velhice, a poética da monotonia

“Lembranças no lago dourado” foi a última das estreias do 19o Porto Verão Alegre. A peça, com direção de Nora Prado, traz no elenco Paulo Vicente, Claudio Benevenga e Ciça Reckzieguel em dramaturgia escrita pelos quatro componentes do coletivo. No palco, um homem é levado a uma casa de repouso onde passará o resto de sua velhice. Lá, ele se encontra com um amigo de infância e os dois juntos lembram de suas mocidades. Com um ritmo lentíssimo, a narrativa se concentra mais na descrição dos personagens e das situações em que eles se encontram do que propriamente conta uma história. Não fossem as boas atuações, a produção, que fez três apresentações no Teatro do SESC, não venceria a monotonia.

Dramaturgia lenta
Não se trata exatamente de verificar um problema da dramaturgia de “Lembranças no lago dourado”, mas, analisando suas marcas, identificar sua natureza e aí observar os desafios que ela impõe ao espectador. Diante de si, o público não terá aqui uma narrativa tradicional: não há um conflito solucionável e nem um desenvolvimento organizado em causa e efeito que se dirija a um ápice. Ao longo de toda a peça, os vários momentos estão desprovidos de hierarquia e surgem, como num quadro cubista, tal qual partes diferentes de um mesmo plano que, ao final, é visto como bidimensional.

A história começa quando Ramiro (Paulo Vicente), a contragosto, é trazido pela sobrinha ao Lago Dourado Hotel, uma casa de repouso que tem como principal público-alvo pessoas de idade avançada. Lá, ele se encontra com Bernardo (Cláudio Benevenga), um amigo de infância, que o acolhe e passa a apresentar a ele o lugar onde juntos vão conviver no fim dos seus dias. A partir daí, o que se vê ao longo de sessenta minutos são episódios deslocados entre si que nada trazem de novo à solução do contexto inicial. A contribuição de todas as cenas é o oferecimento de novas matizes na descrição tanto de Bernardo quanto de Ramiro.

O calor de uma noite sem ar condicionado, um passeio à orla do rio, as delícias do café da manhã, a descoberta da internet, as novas amizades que surgem a partir das redes sociais são temas dos quadros que surgem na galeria de episódios. Dentre eles, valem citar também as situações em flashback em que Ramiro e Bernardo voltam ao passado. Eles se lembram de uma serenata dedicada a uma menina por quem um dos dois estava apaixonado, das idas ao cinema Cacique e da copa do mundo de 1974. Como todos esses momentos aparecem sem elos de ligação suficientemente fortes entre si, o ritmo da dramaturgia se estende vertiginosamente. Da plateia, têm-se a nítida sensação de que a peça pode acabar em quinze minutos ou pode durar ainda cinco horas.

O efeito é lírico se assim se puder chamar, por exemplo, o romance “Morte em Veneza” (1912), de Thomas Mann, ou a peça “Nossa cidade” (1938), de Thornton Wilder. Há nessas abordagens o privilégio para uma metáfora da passagem do tempo que seja menos desprovida de efeitos e mais natural: cheio de acontecimentos inúteis e de tempos mortos como é na vida fora da narrativa. O desafio que essa versão traz é a monotonia, isto é, o tédio da experiência sem sentido, não teleológica.

Uma última questão sobre a dramaturgia que é preciso ser tratada e, agora sim, negativamente, é a idade dos personagens. Tendo sido eles adolescentes em 1974, eles chegam a 2018 com, no máximo 65 anos. Esse dado faz da narrativa inverossímil, pois todos os outros aspectos apontam para que eles pareçam ter mais ou menos 90 anos e, portanto, foram jovens por volta de 1940. 

Direção imprime um esforço poética que embeleza o trabalho
A direção de Nora Prado visivelmente parece considerar os desafios da dramaturgia e enfrentá-los com coragem e segurança. Em nenhum momento da sessão de estreia, pareceu ter havido algum tipo de embolotamento nas ações que denunciaria algum tipo de autocrítica. Nesse sentido, é possível dizer que a peça “Lembranças no lago dourado” tem de fato interesse em poetizar a passagem do tempo e em exortar para que o público reflita o quanto envelhecer pode ser bom. E isso é muito positivo.

Partindo desse princípio, pode-se observar o quanto a produção atingiu bem seus objetivos. Ao longo da apresentação, os personagens surgem doces em suas idiossincrasias, resolvendo problemas comuns, imersos em suas pequenas realidades cotidianas: a fome, o sono, o desejo, o sonho... Tudo isso é muito humano e essa simplicidade tácita é a massa com que a estrutura espetacular constrói sua beleza interior.

A opção por compor o cenário por diversas cadeiras diferentes, numa provável alusão à peça “As cadeiras”, de Eugène Ionesco, tem seus efeitos positivos e negativos. É interessante a referência se ela nos trouxer a imagem das ausências: as pessoas que partiram, aqueles amigos que sumiram, a solidão da velhice. No entanto, em “Lembranças do lago dourado”, talvez não seja essa a imagem mais nítida. O palco fica ocupado por um grupo de móveis meio soltos e sobre os quais nenhum desenho de iluminação mais onírico traga alguma beleza. O todo está disforme e sem vida na concepção cenográfica de Fiapo Barth. A luz de Anilton Souza e de Maurício Moura perde várias chances de ser mais que simples iluminação.

A trilha sonora de Everton Rodrigues e o figurino de Rosângela Cortinhas colaboram com o elenco e com a dramaturgia nos méritos do espetáculo dentro da proposta. Há um reforço em uma estética mais romântica, própria da idealização, que é cara para o conjunto. Deve se por em destaque positivo o figurino que Ciça Reckzieguel usa quando interpreta, ao mesmo tempo, as namoradas Celeste e Cleide.

Bom conjunto de interpretações
Ciça Reckzieguel, Paulo Vicente e Claudio Benevenga apresentam bons trabalhos de interpretação, buscando compor personagens mais doces e carismáticos, sendo essas aparências medidas para vencer a falta de contorno das figuras. Em ninguém, há qualquer contorno, isto é, ao longo da peça, todos os personagens saem exatamente como entraram. De maneira superficial, poder-se-ia dizer que, no Ramiro de Paulo Vicente, há alguma transformação uma vez que ele entra mal-humorado. No entanto, não há de se estar segura o suficiente a análise para se dizer que, ao fim da peça, ele já está bem.

É visível o compromisso dos três intérpretes em oferecer um resultado de enorme qualidade. Tudo o que é dito está bem compreensível, há brincadeira, há gestos bem claros e intenções precisas. Em todas as cenas, se vê uma disponibilidade bastante louvável do elenco em construir um quadro potente dentro do possível que a proposta garante.

“Lembranças do lago dourado” é a primeira peça dirigida pela atriz Nora Prado, que volta ao Rio Grande do Sul depois de morar 25 anos em São Paulo. Que ela se sinta bem vinda à sua terra natal e que continue devolvendo ao seu público trabalhos positivos como esse.

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Ficha Ténica:
Paulo Vicente: Ramiro
Cláudio Benevenga: Bernardo
Ciça Reckzieguel: Madrinha, Thelma, Juliana, Neuza, Lúcia, Gerente, Maria Antonieta
Direção: Nora Prado
Texto: Nora Prado, Cláudio Benevenga, Ciça Reckzieguel e Paulo Vicente
Trilha Sonora: Everton Rodrigues
Produção: O Grupo
Cenário: Fiapo Barth
Figurinos: Rosângela Cortinhas
Iluminação: Anilton Souza e Maurício Moura
Fotos: Nora Prado
Duração: 60 min
Classificação: 14 anos

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