sábado, 3 de fevereiro de 2018

A mecânica do amor (RJ)

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Foto: Jéssica Barbosa

Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio


A comédia que não deu certo

“A mecânica do amor” tem dois personagens muito interessantes, mas uma dramaturgia mal construída. Escrita por Julio Conte em 1997, ela foi encenada pela primeira vez em 2016 e está de novo em cartaz no 19o Porto Verão Alegre com direção do próprio Conte e com Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio no elenco. Na narrativa, dois mecânicos conversam sobre mulheres enquanto consertam um carro quando surgem dois altos lobistas políticos e tentam enredá-los em uma trama de corrupção. A produção faz hoje mais uma apresentação no teatro do Centro Histórico-Cultural Santa Casa, no centro da capital gaúcha.

Más atuações em trecho confuso
A peça começa bem, mas trilha caminhos muito adversos ao longo da dramaturgia. Na história, Jambolão (Lucas Sampaio) e Caneta (Fabrizio Gorziza) são dois mecânicos de um lugar muito afastado dos grandes centros urbanos. Em sua doce simplicidade, eles revelam seus sonhos e frustrações com as mulheres de um jeito bastante tocante enquanto deixam ver suas existências toscas e até relativamente ingênuas. Como conquistar as mulheres, como conviver com o mundo delas, como se manter em um relacionamento e o que fazer com seus próprios interesses são algumas das questões que aparecem de maneira até bem engraçada em alguns momentos. 

O problema do texto de Julio Conte aparece quando surgem dois outros personagens que nada têm a ver com o contexto inicial da proposta. Rick (Gorziza) foi colega de colégio de Jambolão e, depois de ter-lhe feito muito mal, vem para compensar o estrago. No entanto, ele é seguido por Anselmo (Sampaio), um lobista político, que vem lhe cobrar sua participação em mais um esquema de corrupção. “A mecânica do amor”, de uma comédia de costumes sem grandes pretensões, de repente, vira um drama complexo que se organiza a partir de vários engendramentos ficcionais com fortes relações ao panorama político brasileiro em tempos de Lava Jato.

O contexto da narrativa fica ainda pior quando a dramaturgia ganha ares de experimentação. Em primeiro lugar, Conte parece sentir que é preciso envolver o metateatro na solução do problema de dois atores interpretarem quatro personagens. A troca de roupa de um deles acontece em cena, fazendo alusão à presença do público e a como esse vai compreender a proposta. Em segundo lugar, com o auxílio da luz, há um jogo em que os dois intérpretes dão vida aos quatro personagens ao mesmo tempo em uma conversa. E só a voz é usada para caracterizar as figuras. Nesse momento, fica bastante difícil compreender o que está acontecendo e valem algumas reflexões sobre essa avaliação. 

De início, pode-se considerar a apresentação e a manutenção do acordo narrativo entre o texto e o leitor. “A mecânica do amor” apresenta-se muito bem através de uma cena longa e bem concebida a partir de vários signos como cenário, figurino, composição de personagens, etc. Tudo isso, porém, parece ser jogado fora quando há a virada. O que passa a acontecer depois da chegada de Rick e de Anselmo não tem nada a ver com o bate-papo de Jambolão e Caneta. O corte é brusco e entra de maneira desigual na estruturação do todo. Se o lado de lá era uma comédia boba com peso nos personagens, aqui há um drama difícil que exige da audiência muita atenção. Sem saber o que é para ser feito com o que se tinha, o público fica, diante do novo, com resistências bastante plausíveis.

E há também uma questão em que a dramaturgia sofre com a direção e com as interpretações. Se Lucas Sampaio e Fabrizio Gorziza têm boas atuações no primeiro quadro, no segundo, acontece o exato oposto. Metade das frases não se ouvem e, do que é minimamente audível, chega à plateia com muitos problemas de dicção. O registro vocal utilizado em Rick e em Anselmo é péssimo, comprometendo ainda mais os méritos da obra.

Com alívio, no trecho final da peça, “A mecânica do amor” retorna às deliciosas figuras de Caneta e Jambolão e, em termos estéticos, tudo acaba bem. No entanto, fica o desprazer de uma peça que foi bem menos o que podia ter sido infelizmente.

A experimentação baseada na confiança
O cenário de Kiko Angelim, os figurinos de Thaís Parttichelli e a luz de Fabiana Santos se esforçam em positivamente oferecer bons valores à produção. Há que se destacar a beleza do conjunto de detalhes que são vistos em cena no palco na construção do todo. De igual modo, no que se refere a Caneta e a Jambolão, tem-se, em “A mecânica do amor”, bons méritos na defesa de figuras carismáticas e que, pela colaboração dos atores Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio, surgem oferecendo ótimo ritmo.

Nem de longe essa é uma das melhores peças de Julio Conte, mas elogia-se o interesse do consagrado encenador em experimentar linguagens acreditando na confiança de seu público fiel e dedicado. Que esse frescor nunca lhe abandone.

*

Ficha Ténica:
Texto e direção: Júlio Conte
Elenco: Fabrizio Gorziza e Lucas Sampaio
Iluminação: Fabiana Santos
Cenário: Kiko Angelim
Figurinos: Thaís Partichelli
Produção: Luísa Barros e Thaís Pinheiro
Foto: Jéssica Barbosa

Um comentário:

  1. Texto perfeito. Achei a peça ruim e muito mal resolvida. Gostei apenas da fase inicial, antes de surgirem os tais personagens corruptos.

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