terça-feira, 23 de agosto de 2016

Ordinary Days - um musical off-Broadway (RJ)

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Foto: João Pedro Marinho


Fernanda Gabriela e Hugo Bonemer

“Ordinary Days”, um dos melhores destaques no inverno carioca

“Ordinary Days”, do americano Adam Gwon, é o excelente musical, idealizado pela Loki Entretenimento, em sua primeira versão brasileira produzida pela Cerejeira Produções e pelo CEFTEM. A montagem, que é dirigida por Reiner Tenente, vem agora na íntegra depois de uma pocket, que foi apresentada em julho de 2015 no Leblon. No elenco em excelentes trabalhos, Fernanda Gabriela, Hugo Bonemer, Julia Morganti e Victor Maia se revezam nos papeis ao longo da temporada com Caio Loki, Gabi Porto, Mau Alves e com Tecca Ferreira, que, quando não estão nos papeis principais, atuam no coro. A pianista Arianna Pijoan é um dos maiores destaques desse espetáculo tocante que faz a diferença na programação teatral no Rio nesse inverno. A peça fica em cartaz no Teatro Serrador, na Cinelândia, até 28 de agosto.

Dramaturgia sobre conexões
Escrita entre 2006 e 2008, a peça fez sua primeira temporada na Off-Broadway no outono de 2009. Na história, quatro personagens – Warren (Victor Maia), Claire (Fernanda Gabriela), Jason (Hugo Bonemer) e Deb (Julia Morganti) – são jovens solitários em Nova Iorque em busca de algo que dê sentido às suas vidas. Há pouco, os namorados Claire e Jason resolveram morar no mesmo apartamento sem talvez estarem certos de que estão preparados para esse passo no relacionamento. Em outro canto da cidade, a estudante Deb está desesperada por ter perdido seu caderno com anotações para sua tese, mas ele felizmente é encontrado por Warren, um jovem ajudante de artista, e, assim, eles têm um primeiro encontro. 

“Ordinary Days” é sobre conexões, sobre a capacidade do ser humano de unir acontecimentos diferentes de sua vida e fazer disso uma oportunidade para dar sentido a ela. Ou sobre a habilidade em se conectar uns com os outros e com os espaços onde se vive, afastando o medo da solidão ou, pelo menos, chegando a ela de um modo menos duro. O autor Adam Gwon tinha vinte e seis anos ao terminar mais um curso de dramaturgia para musicais quando decidiu trabalhar sozinho pela primeira vez em um projeto unicamente seu, começando por compor as canções e só então ver o que elas suscitariam. Na ocasião, ele estava lendo o romance “Mrs. Dalloway”, que a inglesa Virgínia Woolf lançou em 1925 e que serve, entre outras coisas, para se refletir sobre como fatos diversos da vida cotidiana se relacionam e podem (ou não) interferir na existência do ser humano.

Nos personagens criados por Gwon, paira a emergência das pessoas em encontrar o sentido de sua existência, essa que é tão compartilhada na contemporaneidade sedenta por cliques, curtidas e visualizações rápidas. As cenas desse musical são metáforas para as relações também fragmentadas vividas principalmente em cidades grandes, como o Rio de Janeiro, por exemplo. Os namorados Jason (Hugo Bonemer) e Claire (Fernanda Gabriela) decidem morar juntos, mas a necessidade de lugar entre as coisas dela para a mudança dele faz o casal pensar sobre o espaço que é preciso deixar para que alguém entre em nossa vida. “I´ll be here”, uma das últimas entre as dezenove canções que fazem parte desse espetáculo, remete ao buraco deixado pelas pessoas falecidas em 11 de setembro de 2001, mas bem pode ser associada a qualquer outro acontecimento também avassalador. Consciente da dor causada pela desconexão, Claire talvez tenha medo de se conectar novamente, mas o apaixonado Jason não sabe disso ainda e não entende porque, para a namorada, tudo parece ser tão difícil.

Na outra ponta da Big Apple, e também da dramaturgia, quando o otimista Warren (Victor Maia) marca com Deb (Julia Morganti) para conhecê-la e devolver-lhe seu caderno de anotações que ele encontrou perdido, ela estava desesperada. Deb, cuja pesquisa acadêmica é sobre Virgínia Woolf, retornou aos estudos depois de ter fracassado na vida profissional. Sem suas anotações, ela não poderia terminar o texto, o que seria um fracasso também em sua vida como estudante. No encontro marcado por Warren, Deb acha estranho tanta alegria nele, que tem sonhos, mas não tem um projeto para realizá-los. Insatisfeito como ajudante de um artista plástico, o tímido Warrren ainda acredita que é possível fazer algo relevante e que marque sua existência entre as pessoas, o que é inspirador tanto para Deb quanto para o público desse musical. Ele olha para fora e ela para dentro e o cruzamento entre eles pode fazê-los melhor. Enquanto observam um quadro, no Metropolitan Museum of Art, ela lembra de que, através de um raio-X, é possível ver os percursos trilhados pelo artista antes de finalizar a tela, mas Warren pergunta: “Por que eu deveria me perguntar sobre o que não está lá?” Eis aí meios diferentes de se conectar com o mundo.

Amor e amizade, medo e coragem, decisões que se fazem e situações as quais se deve conformar são qualidades do universo humano que Adam Gwon convida a contemplar. A organização em formato de ópera, todo cantado, leva o espectador ao realismo através de uma poesia sublime que encanta, comove e nutre, principalmente porque aqui, nessa versão brasileira, é tão bem defendida. Aplausos!

A brilhante participação da pianista Arianna Pijoan
A direção de Reiner Tenente, assistida por André Viéri, articula as cenas vencendo com galhardia os desafios de uma composição metrificada. O jogo, que se dá em cada cena e no modo como elas se relacionam ao longo da apresentação, dialoga com a música unicamente interpretada pelo piano elétrico tocado por Arianna Pijoan no centro do palco. Em primeiro lugar, cumprindo o previsto pelo autor no texto, toda a música dessa peça é tocada ao vivo e por um único pianista que atua quase como um quinto personagem. Ele, o músico - talvez uma espécie de Deus menos atuante do que na Idade Média, mas ainda assim plateia do que fazemos por aqui em nosso tempo -, usa os sons eletrônicos de melodias cheias de ritmo mas não menos valorosos acordes para preencher os vazios existenciais da grande metrópole. São esses vazios o lugar comum onde esses personagens tão diferentes se encontram, o que os une e onde nasce toda a encenação proposta por Tenente e por Viéri. Na superfície, o coro faz do invisível um universo paralelo talvez só não mais profundo porque não é possível demorar-se no todo quando se considera a parte.

Em segundo lugar, está o brilhantismo de Arianna Pijoan, que fala as palavras musicais de Gwon ao longo de todo o espetáculo. Delicada e forte, sua participação em cada cena convive com as atuações de modo elegante, comedido, pontual e enormemente valoroso, como também o foi a de Marcelo Farias na versão primeira dessa produção. “Ordinary Days”, assim, não sendo um musical de grandes cenários que entram e saem nem de centenas de figurinos brilhantes ou de coreografias complicadas, chega ao ponto através da maravilha que é a boa música em excelente interpretação.

Victor Maia e Julia Morganti

Belo conjunto de atuações
Nas interpretações cênicas, o carismático Victor Maia (Warren) apresenta bom trabalho ao lado da ótima potência musical e divertidíssima performance de Julia Morganti (Deb) na viabilização do núcleo mais cômico da narrativa. Em paralelo, há as belíssimas vozes de Hugo Bonemer (Jason) e de Fernanda Gabriela (Claire), com destaque para essa última, na apresentação dos personagens mais dramáticos. A enorme qualidade das intepretações dos quatro com o preciosismo das vozes de Bonemer e sobretudo de Gabriela elevam os méritos de “Ordinary Days”, situando a produção como um dos melhores momentos da programação teatral na temporada.

Paira ainda a coerência estética dos figurinos de Renan Mattos, optando por uma paleta de cores que versa sobre vários tons, mas sempre em níveis mais escuros. Através deles se vê a solidão dos pequenos personagens submersos pelos prédios da cidade alta e veloz. Em destaque, a unanimidade das botas de cano curto que oito dos nove intérpretes usam talvez como modo de se embrenhar pela vida versus o medo que Claire sente em se jogar a ela. A luz de Renan Mattos e o cenário fazem boas colaborações, mas sem grandes méritos.

Seja em Manhattan para Adam Gwon ou no mundo para todos aqueles que, de alguma forma, produzem versões de “Ordinary Days”, esse projeto é meio pelo qual muitos jovens artistas se mostram no meio artístico e confirmam suas habilidades cênico-musicais. Adiante disso, está a oportunidade do público de conhecer a si mesmo e afinar seus olhar para as pequenas coisas do seu dia a dia no Rio de Janeiro, onde a grandiosidade da natureza e das construções convive com pequenos panfletos, pequenas esquinas e pequenas pessoas, mas não menores sob qualquer aspecto. Evoé!

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Ficha Técnica
Texto e Música: Adam Gwon
Diretor: Reiner Tenente
Diretor musical: Marcelo Farias
Assistente de direção: André Viéri
Pianista: Arianna Pijoan
Produção: Cerejeira Produções e CEFTEM
Idealização: Loki Entretenimento
Iluminação: Rubia Vieira
Figurino: Renan Mattos
Designer de Som: Rodrigo Oliveira

Elenco
Hugo Bonemer, Gabi Porto, Victor Maia, Caio Loki, Fernanda Gabriela, Julia Morganti, Mau Alves e Tecca Ferreira se revezam nos papeis dos protagonistas.

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