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Denise Fraga |
Denise Fraga brilha em excelente espetáculo de Brecht dirigido por Cibele Forjaz
“Galileu Galilei” é mais um excelente espetáculo protagonizado por Denise Fraga. A peça, escrita pelo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), foi baseada em fatos reais e narra a história do físico italiano que, entre outras coisas, provou que a Terra, girando em torno do Sol, não era o centro do universo. Para fugir da fogueira da Inquisição, ele precisou negar seus próprios estudos, que sobreviveram graças às reflexões possíveis nos países não-católicos e chegaram até os dias de hoje. Dirigida por Cibele Forjaz, a montagem produzida por José Maria tem no elenco também Ary França, Lúcia Romano, Théo Werneck, Maristela Chelala, Vanderlei Bernardino, Jackie Obrigon, Luís Mármora, Silvio Restiffe e Daniel Warren, todos em ótimos trabalhos. Em cartaz até esse domingo, dia 17 de julho, no Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, eis uma ótima pedida na programação carioca.
Um personagem essencial na história
Galileu Galilei (1564-1642) é um dos homens mais importantes da história da humanidade. Suas reflexões, para muito além da astronomia, revelam a complexidade não apenas do seu tempo, mas de toda uma cultura em transformação. Partindo de contribuições de pensadores contemporâneos e antigos e se utilizando dos avanços tecnológicos que uma Itália pós-Renascença lhe possibilitava, ele contribuiu de maneira ímpar para a estruturação de um novo panorama histórico. Sua argumentação científica mudou o lugar de Deus, seu conceito, suas funções, sua relação com os homens, com a política e com a sociedade. Em uma época nunca antes tão marcada pelas guerras religiosas, em que as fronteiras já alargadas do mundo precisavam se solidificar, ele foi definitivo.
Desde os gregos Aristóteles (384 – 322 a. C) e Ptolomeu (90 – 168 d. C.), prevalecia o sistema geocêntrico segundo o qual o sol e todos os demais astros giram em círculos perfeitos e constantes ao redor da Terra, onde há vida. Foi o polonês Copérnico (1473-1543) quem introduziu, como única diferença a esse modelo, a hipótese de que era a Terra que estava no centro. O italiano Galileu foi além. Para ele, em primeiro lugar, isso não era uma hipótese, mas uma verdade. A Terra não só se movia em redor do sol, mas se movia ao redor do próprio eixo e a Lua, que não era uma esfera perfeita, se movia em volta da Terra. Algo assim também acontecia com outros planetas, onde a vida poderia ser possível como aqui. Seus argumentos eram consistentes o bastante para fazer seus estudos célebres por toda a península. O problema foi sua tese de que os versículos bíblicos que diziam o contrário precisavam ser reinterpretados.
Se o dia e a noite, os movimentos das marés, o aparecer e o desaparecer dos astros do céu são obras da física, o que faz Deus? Se os teólogos da Igreja erraram na interpretação da Bíblia, para que eles servem? Tudo isso se parecia demais com o que dizia o padre dominicano Giordano Bruno (1548-1600), morto na fogueira da Inquisição. Para piorar, Galileu estruturou sua obra “Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo”, lançada em 1632, em uma conversa entre dois homens: um acadêmico inteligente (Salviati) e um padre idiota (Simplício). Nas palavras do segundo, estavam reproduzidas as ideias do então Papa Urbano VIII, que o autor havia conhecido anos antes. Nesse sentido, entre o célebre Copérnico e o incendiado Bruno, o pêndulo do destino de Galileu caia para o pior.
Houve três versões de Bertolt Brecht para essa história, todas elas diferentes no que diz respeito ao seu campo semântico. A primeira (“Das Leben des Galilei”), escrita entre 1937 e 1938, quando o dramaturgo estava na Dinamarca, recebeu uma versão produzida na Alemanha nazista em 1943. Nessa, Galileu Galilei era visto como um herói, que foi vítima da Inquisição, mas ainda assim capaz de colaborar intimamente com a evolução do pensamento humano. A segunda foi reescrita quando Brecht já morava nos Estados Unidos, depois do fim da Segunda Guerra, no calor das bombas atômicas de Hiroshima e de Nagasaki. Diferente da anterior, o protagonista foi visto como um homem comum, tomado pela ambição e comprometido com os próprios vícios. Com a tese final – "Eu te digo: aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira é um criminoso" –, o texto denunciava que o mau uso do conhecimento pode atrasar a evolução da humanidade. No processo de construção dessa adaptação, colaborou o ator britânico Charles Laughton (1899-1962), que interpretou o papel título nas temporadas de Hollywood e da Broadway de 1947. Bertolt Brecht morreu quando estava ensaiando sua terceira possibilidade da história e que, por causa do seu falecimento, infelizmente não chegou a ser concluída. O aspecto mais humano, que revelava melhor a complexidade da questão, se preparava.
O Brasil conheceu ainda uma quarta versão da peça: a que foi dirigida por José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina. Ela estreou em São Paulo no dia 13 de dezembro de 1968, dia da promulgação do Ato Institucional número 5, o marco central do início do período mais negro da ditadura militar no país. No elenco, Cláudio Corrêa e Castro atuava no papel principal ao lado de Ítala Nandi, Esther Góes, Fernando Peixoto, Renato Borghi, Raul Cortez, Othon Bastos, Otávio Augusto, Pedro Paulo Rangel e muitos outros atores mais e menos conhecidos hoje. Nessa versão, o final foi de novo modificado, dessa vez, em favor do privilégio à temática da repressão política que o país, e em especial o grupo, vivia. Nessa adaptação do original brechtiano, uma cena de carnaval se tornou uma célebre crítica do grupo a quem apoiava o novo governo ou ainda não tinha até então mais bravamente defendido a democracia extinguida. Essa cena é referida na montagem dirigida por Cibele Forjaz que aqui se analisa e talvez se trate do seu ponto menos unânime.
O mais interessante no todo dessas adaptações é notar a riqueza do personagem. A partir dele, em diferentes momentos da história, temas como a importância do estudo na transformação da sociedade, as mais diversas formas de relacionamento entre Deus e homens, o modo como é (ou não) possível estabelecer diálogo entre o mundo contrarreformista e o que vivemos hoje são tratados. Para adiante de uma leitura rasteira (porque óbvia) da Inquisição como malvada, sobram perspectivas mais profundas, como aquelas que revelam o aspecto político do contexto. Tanto as forças que abafaram como aquelas que eternizaram as contribuições de Galileu Galilei estão no cerne da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), esse talvez um dos conflitos mais importantes da Idade Moderna.
Por volta do centenário da Reforma Protestante, vários reinos que hoje são conhecidos como Espanha, Inglaterra, França, Alemanha e Holanda (entre outros) estavam em uma acirradíssima disputa pela liderança política e principalmente econômica no mundo. Essa só era possível através da posse de colônias na América, África e na Ásia. Lutero (Alemanha), Calvino (França) e Henrique VIII (Inglaterra) haviam colocado em xeque a força do Vaticano de referendar os avanços militares principalmente da Casa de Habsburgo (Sacro Império Romano-Germânico) nessa corrida. Na primeira metade do século XVII, a Europa estava dividida entre União Evangélica de um lado e Liga Católica do outro. Os Tribunais do Santo Ofício eram a bomba atômica (já usada com força há mais de duzentos anos contra os muçulmanos e judeus) em favor da segunda. Eis que, ameaçados (política-economicamente) pelos católicos Habsburgo, os também católicos Valois (da França), leia-se Cardeal Richelieu, entraram na batalha surpreendentemente a favor dos Protestantes. E é nesse momento que a Inquisição precisou ser mais efetiva do que jamais fora.
Amigo de Galileu, o Papa Urbano VIII livrou-o da fogueira, prendeu-o em casa e tentou calá-lo até sua morte, que aconteceu em 1642. Seis anos depois, a Paz de Vestfália foi assinada em favor da liberdade religiosa na Europa. Em 1965, a Inquisição passou a se chamar Congregação para a Doutrina da Fé (que ainda existe!). Em 1992, o Papa João Paulo II finalmente reconheceu o erro da Igreja para com Galileu e, em 2000, para todos os punidos pelo Santo Ofício. A obra de Galileu felizmente conseguiu atravessar os campos de batalha e chegou até Brecht e nós todos. Pelos seus méritos, os de Cibele Forjaz, de Denise Fraga e os de vários outros, está em cartaz no Rio de Janeiro.
Os vários méritos da direção de Cibele Forjaz
A direção de Cibele Forjaz, a partir de caminho dramatúrgico reconstituído por Christine Röhrig, Cibele Forjaz, Denise Fraga e por Maristela Chelala, potencializa a obra. De modo muito sutil às vezes mais, em outras menos, é visível o esforço da encenação em se aproximar do público. Isso atualiza o conceito de teatro didático ao qual Brecht também associou as peças “Mãe Coragem e seus filhos” e “O círculo de giz caucasiano”. A Itália do século XVII, sob vários aspectos um mundo muito diferente do nosso, faz excelentes pontes com hoje através de um linguajar acessível e de cenas bem estruturadas e, de modo brilhante, bem articuladas no todo da peça. O tema – astronomia, física, matemática, teologia – é desenvolvido de maneira a incluir as plateias mais diversas, sem ser nem pedante, nem superficial.
A fluência da encenação, a partir da articulação de vários elementos de diversas origens semânticas, revela o modo como a linguagem teatral mais vigente (leia-se comercial) voltou a abandonar o realismo. Quase todos empenhos de Forjaz em quebrar a ilusão, no esforço do distanciamento brechtiano, vão à falência devido ao público já estar acostumado com a ressignificação de referências. Em outras palavras, usar couro no figurino de cardeais, mulheres interpretando homens, amostragem das coxias, entre outras ações, aumentam o interesse da audiência pelo espetáculo, mas não chegam a fazê-la esquecer de que está em um teatro, como Brecht queria. Nas últimas décadas, a própria Forjaz contribuiu com isso, oferecendo ao público espetáculos que reeducaram o olhar do público de uma forma nada conservadora e muito potente.
O único momento em que a narrativa se quebra, isto é, se desarticula é a cena de carnaval. No início do terceiro terço da peça, marchinhas de carnaval e referências à situação política nacional aparecem em um longo quadro. Apesar de, para quem conhece história do teatro brasileiro, essa ser uma referência à montagem do Oficina, o feito se reduz ao barateamento tanto dos horrores dos tribunais do Santo Ofício quanto os da ditadura militar brasileira. Galileu Galilei escapou de ser queimado em praça pública, os atores do Teatro Oficina estavam sendo espancados e presos enquanto a ex-presidenta Dilma (por mais injustiçada que talvez esteja sendo) ensaia sua aposentadoria em Porto Alegre. Nesse sentido, o quadro estético engorda a narrativa sem levá-la para algo relativamente sólido, embora dê à montagem aspecto de produção politicamente engajada.
Em exuberante composição, Denise Fraga brilha ao lado de ótimo elenco
Théo Werneck, Jackie Obrigon, Silvio Restiffe, Maristela Chelala, Luís Mármora, Lúcia Romano apresentam bons trabalhos, mas Daniel Warren, Ary França e Vanderlei Bernardino se destacam pelo modo como agarram as melhores oportunidades que têm e dão excelentes contribuições. Os ótimos texto e direção ficam ainda melhores em atuações vivas, carismáticas e potentes em que se veem usos do corpo e da voz que elevam as qualidades do todo.
Denise Fraga, com plena exuberância, lidera o elenco na pele do personagem título: presente em todas as cenas e em redor de quem tudo gira. O desafio é cumprido com galhardia a partir do seu natural envolvimento com a plateia, essa fascinada pelo modo envolvente com que a atriz propõe a relação. Seu Galileu é humano: nem tão herói como o primeiro Brecht, nem tão vil quanto o segundo e provavelmente menos visceral do que aquele que deve ter sido concebido pelo Oficina. Sem cumprir nenhuma receita, atriz parece estar disposta a driblar os desafios de um personagem célebre e pronta para obter sucesso em uma construção original. Com muitos méritos, ela narra o personagem que descreve, faz dele argumento de reflexão social, entretém e emociona.
A luz de Wagner Antônio, a cenografia de Márcio Medina e os figurinos e adereços de Marina Reis fazem excelentes contribuições na construção do espetáculo. Poucos elementos, mas usados na grandiosidade de cada detalhe, tornam a narrativa um suntuoso espetáculo. Tudo ocupa o enorme palco do Teatro João Caetano e as mais de duas horas em que “Galileu Galileu” atravessa o tempo com agilidade, Inteligência e relativo bom gosto. A música original e a direção musical de Lincoln Antônio e de Théo Werneck oferecem outros níveis para a narrativa e também para a sua defesa nos dias de hoje positivamente. Em todos os aspectos, parecendo grande e pequeno ao mesmo tempo, o espetáculo exibe uma concepção estética bem amarrada que encanta não só pelo texto e pelas interpretações, mas sobretudo nesses elementos.
Aplausos!
É uma pena que “Galileu Galilei” se despeça hoje da Cidade Maravilhosa depois de já ter se apresentado em várias capitais do país. Que ela fique mais tempo por aqui ou volte para novas oportunidades! Aplausos!
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Ficha técnica
Texto: Bertolt Brecht
Elenco: Denise Fraga, Ary França, Lúcia Romano, Théo Werneck, Maristel Chelala, Vanderlei Bernardino, Jackie Obrigon, Luís Mármora, Silvio Restiffe e Daniel Warren
Direção: Cibele Forjaz
Trilha Sonora: Lincoln Antônio e Théo Werneck
Cenografia: Márcio Medina
Figurinista: Marina Reis
Iluminação: Wagner Antônio
Produção Executiva: Lili Almeida
Direção de Produção: José Maria
Assessoria de Imprensa: Barata Comunicação
Transportadora Oficial: AVIANCA | Patrocínio Exclusivo: BRADESCO
Realização: NIA Teatro, Ministério da Cultura e Governo Federal
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