segunda-feira, 21 de março de 2016

Curral grande (RJ)

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Foto: divulgação


Lucas Lacerda, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Brisa Rodrigues

Grupo estreia estreia no Rio ótimo espetáculo

O ótimo “Curral grande” é o primeiro espetáculo do Coletivo Ponto Zero no Rio de Janeiro, grupo constituído por egressos da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. A história trata dos “campos de concentração” abertos pelo governo cearense entre 1915 e 1932 como política de retenção dos flagelados da seca que migravam para Fortaleza. Dentre os vários méritos da produção, está o texto de Marcos Barbosa que nobremente sugere uma velha ferida na história do país que precisa ser tratada. A direção de Eduardo Machado usa de modo ímpar os signos teatrais, qualificando a viabilização cênica da proposta. No elenco, Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Lucas Lacerda apresentam ótimos trabalhos de interpretação no todo e individualmente. Em cartaz até o dia 25 de março na Sala Bel Garcia da Sede das Companhias, na Lapa, eis um espetáculo que deve ser visto.

Excelente dramaturgia de Marcos Barbosa
O caso dos “campos de concentração do Ceará” merece renovada atenção porque ainda hoje exibe o tamanho do problema das políticas públicas da região nordeste do país. O termo “higienização”, usado na abertura dos “Currais”, revela uma cultura em que algumas pessoas se acha(va)m melhores do que outras, justificando a medida de “proteção” da capital cearense. Castigado principalmente pela seca, o interior daquele estado merecia maiores investimentos públicos, o que equilibraria as possibilidades de acesso de cidadãos de áreas diferentes à melhor qualidade de vida. A existência desses campos deixa clara a complexidade do modo como alguns brasileiros olhavam para outros brasileiros. E sabemos que essa realidade hoje não é tão diversa no território nacional.

O nome “campo de concentração”, porém, não é bom. A Segunda Guerra, iniciada em 1939, deu novo significado para a expressão e não se pode confundi-los. Os campos de concentração alemães foram lugares mantidos para exterminar em massa o povo judeu (além de homossexuais, ciganos e de pessoas com deficiência física ou psicológica) dentro da tese da superioridade ariana. Isso não se compara com o que aconteceu no nosso país. Os “currais do governo” foram criados para conter a massa de flagelados que, fugindo da seca, migravam para Fortaleza. Por piores que tenham sido, não havia dentro dos “Currais” câmaras de gás.

Para além da proposta, no que diz respeito ao conteúdo, o mérito da dramaturgia de Marcos Barbosa está na sugestão de que o conceito de diferenciação social ainda existe. “Curral grande”, tratando de algo que aconteceu há mais de 80 anos no Ceará, convida o público carioca a olhar para a sua contemporaneidade e perceber que o cerne dessas mesmas mazelas ainda sobrevive infelizmente.

Mas há ainda os valores formais. Estruturada em episódios, a peça se apresenta através de quadros independentes que justapostos se relacionam. Cada nova cena, constituída de partes muitos bem definidas, oferece ao todo nova abordagem. Em cada variedade, do drama à comédia, aprofunda-se um novo grau de complexidade de maneira que o tema é tratado com a seriedade que ele merece. Excelente dramaturgia!

Direção e elenco têm trabalhos destacáveis
Pelo visível domínio de linguagem, a direção de Eduardo Machado é também excelente. Com poucos elementos, o uso que se faz deles no palco é riquíssimo. Cada nova informação que surge – objetos, movimentos, cores, texturas – aparece em meio a um contexto estético que potencializa seus sentidos. A luz através de elásticos dá a ver a chuva, a oposição entre cores quentes e frias no figurino (Agamenon de Abreu) e no cenário (Eric Fuly) revela o conflito social entre o litoral e o interior, pobres e ricos, entre poderosos e flagelados. Referências à era de ouro do rádio brasileiro e ao cinema mudo unem aspectos reais e fictícios em paralelo ao drama e à comédia que, em “Curral grande”, apontam para a profundidade do tema. Narrativas abrigadas pela quarta parede e trechos em que os atores se dirigem diretamente ao público se alternam. Tudo isso, contribuindo para um ritmo mais contemporâneo de exposição, renova o interesse do público sobre o que se está vendo. Parabéns!

Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé e Lucas Lacerda, no elenco, apresentam ótimos trabalhos de interpretação. Em todos, é possível perceber usos variáveis do corpo, dos tons, das intenções, dos movimentos pelo espaço, tempo e assim pela narrativa. Os muitos personagens são apresentados através de inflexões diferentes, exibindo domínio de potencialidades expressivas que merece ser valorizado. O maior mérito, no entanto, é conseguir driblar o desafio de ser novo a cada momento, atingindo a proposta de manter viva a poética que o trabalho parece defender.

Tema essencial na programação de teatro
Se o mundo civilizado pensa que a diferenciação entre seres humanos deixou de existir, a existência dos Currais nos questiona a respeito disso. Esse espetáculo do Coletivo Ponto Zero, como aconteceu com “Hominus Brasilis” (2014) e “Hamlet ou Morte!” (2015) há de fazer bela carreira. Tomara!

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FICHA TÉCNICA
Texto: Marcos Barbosa
Direção: Eduardo Machado
Elenco: Brisa Rodrigues, Brunna Scavuzzi, Carlos Darzé, Lucas Lacerda
Concepção Cenográfica: Eric Fuly
Ass. de Cenografia: Thiago Pessanha
Concepção de Figurino: Agamenon de Abreu
Desenho de Luz: Marcelo Mármora e Elton Pinheiro
Preparação Vocal: Luciana Lucena
Fotografia: Ricardo Borges
Arte Gráfica: Uriel de Souza
Realização e Produção: Coletivo Ponto Zero