quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Fluxorama (RJ)

A excelente Rita Clemente em cena
Foto: Ana Alexandrino

Um espetáculo refinadíssimo

Entre vários significados possíveis, “Fluxorama” pode ser uma peça que fala sobre o esforço que o homem pode fazer em permanecer vivo, existente, pulsante. Com texto de Jô Bilac, o espetáculo reúne três monólogos, cada um deles dirigido pelo ator de uma das cenas. Rita Clemente interpreta “Amanda”, dirigida por Inez Viana. Vinícius Arneiro interpreta “Luiz Guilherme”, dirigido por Rita Clemente. Inez Viana interpreta “Valquíria”, dirigida por Vinícius Arneiro. Em um deles, uma pessoa vai se descobrindo, aos poucos, sem os sentidos. Primeiro, a audição, depois o paladar, o olfato até chegar à visão. Noutro, em meio às ferragens do carro em que se acidentou, uma pessoa vai tentando equilibrar-se em busca da própria consciência para seguir vivo o máximo de tempo possível. Noutro ainda, no absurdo das pressões sociais, uma pessoa corre, desviando o pensamento do cansaço e focando no objetivo para resistir à tentação de parar e desistir. Com muita sutileza, e preciosa delicadeza, o espetáculo fala, na ordem do texto e da encenação, em um tom bastante elegante, assegurando o lugar da profundidade das questões sem parecer nenhum um pouco pedante. Está em cartaz no Teatro do OiFlamengo, zona sul do Rio de Janeiro.

A direção de Inez Viana, nesse espetáculo, ratifica o exercício visto nas produções da Cia. Omondé. O espectador de “Fluxorama” não deve perder a oportunidade de refletir, assim, sobre os lugares diferentes, mas colaborativos, criados para contar a história de forma teatral. De um lado, a interpretação e o texto dito por Rita Clemente. De outro, a pressão que um tecido branco-transparente elástico faz sobre a personagem (uma espécie de rede que empurra “Amanda” para baixo). Aparentemente divergentes, os dois lados podem oferecer aos olhos mais atentos pontos de vista diferentes sobre a mesma questão. Para nós, é enxergar através dessa barreira. Para a personagem é manter-se em pé. Unidos, esses desafios dizem algo pertinente ao tema, sem impor sentido, o que é inteligente, elegante e principalmente próprio da contemporaneidade. Rita Clemente, por sua vez, é sabido que divide o lugar das melhores atrizes de teatro do Brasil com Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro, Débora Olivieri, Kelzy Ecard, Adriana Seiffert, Dani Barros, Sandra Dani, Georgette Fadel, Adassa Martins e outras, cada uma na sua idade e no seu contexto. Aqui, o uso da voz nas minúcias dos entre-fonemas e na evolução dos tons, o jeito como os signos expressos pelo rosto dão a ver uma imagem potente, complexa, positivamente porque nem sempre coesa e coerente, confirmam sua posição entre as grandes intérpretes aqui em excelente trabalho mais uma vez.

Em “Luiz Guilherme”, o espectador não deve deixar de perceber a importância da respiração como, basicamente, o único movimento realmente significativo a quem está preso, sentindo muita dor nas partes do corpo que ainda sente. A direção de Rita Clemente parece ter transformado os intervalos entre as palavras, e mesmo entre as sílabas delas, em música. O resultado é positivo e melhor contemplado se esquecermos, por um momento, o que realmente cada palavra significa. Estaremos diante de um “bailado”, um dançarino que procura preencher o espaço do salão e o tempo da melodia e, ainda por cima, divertir-se enquanto também procura não errar tanto a coreografia. Essa é também uma forma de fornecer um outro ponto de vista sobre o texto dito por Arneiro, de forma que os sentidos disponíveis, quando unidos, poderão gerar um significado mais complexo ao todo da cena. Normalmente na função de diretor, em “Fluxograma” é possível notar um bom trabalho de interpretação de Arneiro: clareza no texto dito, excelentes jogos de olhar, intenções precisas.

Das três histórias, a terceira é a mais frívola, mas não a menos interessante. O diferencial está no fato de que essa não tem um início e nem um fim marcado, mas é um intervalo. (Uma delas começa num dia quando o personagem sente que perdeu a audição e termina quando perde a visão. Outra começa com o despertar de um acidentado ainda no local do acontecido e termina com a sua morte.) “Valquíria” é um intervalo constante, pois, na direção de Arneiro, não há variação de ritmo na interpretação de Inez Viana que seja nem causadora, nem consequente. Em outras palavras, embora haja a diminuição e o aumento da velocidade, esses não são seguidos por mais diminuição ou aumento ainda maior, mas são apenas variações que dão cor para a narrativa. O resultado estético é a sensação de linearidade geral, isto é, a cena já estava assim antes de lha assistirmos e permanecerá assim depois que formos embora, o que é, principalmente porque é a última cena, um alento e uma mensagem: é preciso continuar. Com excelente ritmo no dizer o texto enquanto corre, subindo e descendo rampas, Viana está em um momento raro do seu trabalho como atriz. Nesse espetáculo, ela é vista em tom realista, sem partituras e com alguma liberdade dentro do quadrado que ela desenha. Mais uma vez, consegue um ótimo resultado. 

“Fluxorama”, com uma ficha técnica que reúne bons trabalhos de iluminaçãoo, cenário, figurino e de trilha sonora, é um trabalho artístico que é valoroso porque é também conceitual. Pode, claro, ser visto como mais uma peça, mas sugere uma excelente reflexão sobre as relações entre o que é feito e a forma como é feito, relação essa aqui expressa de forma sublimemente refinada.

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FICHA TÉCNICA
Texto - Jô Bilac

AMANDA / Atuação - Rita Clemente
Direção - Inez Viana

LUIZ GUILHERME / Atuação - Viniciús Arneiro
Direção - Rita Clemente

VALQUÍRIA / Atuação - Inez Viana
Direção - Viniciús Arneiro

Direção Geral: Rita Clemente, Inez Viana e Viniciús Arneiro
Dramaturgista: Diogo Liberano
Cenografia e Identidade Visual: Estúdio Radiográfico
Trilha Sonora: Tato Taborda
Iluminação: Tomás Ribas
Figurinos: Júlia Marini
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna - Astrolábio Comunicação
Fotografia: Ana Alexandrino
Direção de Produção: Liliana Mont Serrat e Damiana Guimarães
Produção Executiva: Paula Valente
Assistente de Produção: Felipe Marcondes

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