No centro, o coreógrafo Victor Maia interpreta Price. À esquerda, com os cabelos ruivos, Vinícius Teixeira. |
A última e bem-vinda sensação do teatro carioca!
“The book of Mormon” é uma sensação no teatro carioca positivamente nesse mês de dezembro. Entre os motivos, está o fato de ser mais um espetáculo que se afasta do politicamente correto, seguindo a trilha do “Porta dos Fundos”, por exemplo, fazendo o público gargalhar de si próprio enquanto vê, no palco, expostos os seus próprios preconceitos. Também porque é o resultado de uma bela iniciativa do Prof. Rubens Lima Jr., da UNIRIO, coordenador do projeto Teatro Musicado, surgido no Centro de Letras e Artes em 1995 e que, com essa produção, chega ao sexto espetáculo. Por fim, tem o mérito de apresentar ao público carioca nomes como Vinícius Teixeira, Bruno Nunes, Nando Brandão e, principal e gloriosamente, Leo Bahia, de quem certamente ainda ouviremos muito falar desde já e para o futuro. E, ainda, consagrar dois excelentes profissionais que merecem a atenção: o diretor musical Marcelo Farias e o coreógrafo Victor Maia. O espetáculo está em cartaz na Sala Paschoal Carlos Magno, na Urca, zona sul do Rio de Janeiro e com entrada franca.
Com músicas, letras e roteiro de Trey Parker, Robert Lopez e de Matt Stone, os mesmos criadores de “South Park”, a peça estreou em Nova Iorque em março de 2011, obtendo nove Tony Awards, incluindo o de melhor espetáculo. A história é a seguinte: terminada a formação de missionários mórmons, um grupo de rapazes recebe do coordenador a informação do lugar no mundo para onde irão pregar e quem será o seu parceiro, pois os mórmons andam sempre em duplas. Um deles, Price (Victor Maia substituindo Hugo Kerth na sessão aqui analisada) alimenta desde a infância o sonho de mudar-se para Orlando, na Flórida, e reza fervorosamente para que o “Pai Celestial” tenha reservado pra ele esse destino ao fim do curso. Infelizmente, a prece não foi atendida. Price irá para Uganda, na África, ao lado de Cunningham (Leo Bahia), um garoto gordo, sem ambições claras e cheios de problemas de relacionamento. Ao chegar no continente africano, lidam com toda a espécie de comportamento assustador aos seus parâmetros: a AIDS por todo o lugar, a subnutrição, a crença aos deuses pagãos, o exercício do corte do clitóris como forma de obter sucesso diante do destino traçado por esses deuses, a prática do estupro de bebês na falta de mulheres virgens que, segundo a crença, poderia curar os homens do HIV, além da opressão por regime paramilitares, as péssimas condições de higiene, o calor, os mosquitos e o fato gritante de serem, enquanto rapazes brancos, minoria entre um número expressivo de pessoas negras. Mais disposto a ganhar aplausos do que propriamente pregar a palavra de Deus, Price é inserido em uma comunidade de outros jovens missionários mórmons que, há tempos, não conseguem converter alguém. Seu espírito de liderança anima o grupo, mas talvez sucumba aos inúmeros testes aos quais sua fé irá ser provada. É nesse caminho que a figura de Cunningham, uma espécie de Sancho Pança geek, desponta. Sem nunca ter lido “O livro dos mórmons” (Ou “O livro de Mórmon”), Cunningham, apaixonado pela nativa Nabulungi (Larissa Landim, que alterna o papel com Giulianna Farias), se vê diante do desafio de contar históris que ele próprio não conhece. A solução é um misto de “O Rei Leão”, “Harry Potter” e de “O senhor dos anéis” com os personagens da bíblia e do livro dos mórmons, casados em sua versão para converter novos fiéis, mas também para proteger o povo de práticas como o estupro e a tortura. Assim, um misto de assuntos/temas extremamente sérios e complexos é tratado ao lado de uma parafernália superficial e consumista: livros e personagens de ação, a homossexualidade visível dos rapazes mórmons, a Disney World. Atores brancos pintados grosseiramente de pretos, cabelos crespos levantados e muitas estampas em um cenário grotesco de papelão mal pintado: para nós, no Brasil, tudo remete à boa e velha tosquice do programa “TV Pirata” e às portas de isopor dos episódios de Chapolim. Nesse musical, a concepção está intimamente amarrada nos diálogos, nas letras, mas também nos cenários, no figurino, na iluminação, nas coreografias e na forma como os personagens dão suas construções a ver. Tudo é excelentemente tosco e agropecuário, sem tirar nem por, entretenimento da melhor qualidade, com ótima versão brasileira assinada por Alexandre Amorim, finalmente quebrando a hegemonia de Cláudio Botelho nos bons trabalhos disponíveis por aqui a partir de produções de lá.
Se, na narrativa dramática, Price e Cunningham vão desbravar a África, em termos actanciais, os dois personagens vão desbravar uma concepção que é estranha a eles. Fora Price e Cunningham, tudo é superficial como já se disse. Da AIDS ao Simba, do lurex cor de rosa nos figurinos às coreografias cheias movimentos apoteóticos a la Ziegfield Follies, das soluções de cenário resolvidas sem esforço na alimentação da magia como na velha Broadway ao texto cheio de palavrões, em tudo se vê uma casca farsesca de referência que garante o riso fácil, porque rápido. Nessa "sopa" de opções estéticas sem aprofundar nenhuma delas, os refrões melosos ao tipo Rodgers e Hammerstein nas canções que terminam em agudos altíssimos convivem ao lado de diálogos repletos de não-ditos, críticas ácidas e muito deboche. Esse lugar esteticamente controverso representa, pela força como está estruturado, forte oposição à complexidade de Price e de Cunningham. De fato, se um dos lutadores é expressivamente melhor que o outro, a briga tende a ser monótona. Porque esse não é o caso, temos aqui a excelência de uma boa encenação dirigida por Rubens Lima Jr. Desde sempre, Price e Cunningham são vistos em lugares limites: ambos querem provar para si e para os outros que podem mais do que aparentam. A falsa coragem de um lado e o falso medo do outro equilibram os dois personagens em uma só protagonização que se alterna em lugar de destaque e ganha o público que, com eles, se identifica (e por eles se apaixona). Profundidade versus superficialidade, tudo pronto para um bom embate artístico.
Composto por alunos de diversos cursos da UFRJ, da UFF e da UNIRIO, o elenco não apresenta excelentes trabalhos em todos os seus momentos, mas é mérito da direção apresentar uma excelente fluência entre os trabalhos bons e aqueles nem tanto de forma coesa e coerente. Porque está em papel quase protagonista, Larissa Landim é a única participação negativamente comprometedora. As canções são interpretadas sem marcas de verdade, as falas são ditas sempre da mesma forma e o corpo apresenta a bacia projetada para frente sem razões estéticas visíveis. Destacam-se positivamente os trabalhos de Vinícius Teixeira (McKinley), de Bruno Nunes (um dos Elders) e de Nando Brandão (o médico), sempre íntegros em suas construções, bem articulados e principalmente fortes. “The book of Mormon”, no entanto, parece ser de Leo Bahia (Cunningham): excelente expressão vocal e afinação, movimentos precisos na apresentação do personagem, tempos e intenções bem postas na sutil construção de uma ótima relação com o público. O olhar quase sempre em diagonais, principalmente no primeiro ato, expressa a busca do personagem por respostas que ele não tem. Ao longo da peça, o foco passa a ser horizontal, delicadamente sugerindo o desenlace da curva dramática do personagem. Nasce aqui uma estrela!
Nada menos que excelentes são as coreografias de Victor Maia para “The book of Mormon”, que também apresentou um excelente trabalho de interpretação na viabilização do protagonista Price. Conhecido por sua participação coadjuvante no musical “Quase Normal”, Maia apresenta agora, em definitivo, o seu primeiro grande trabalho como coreógrafo de marca maior. Os passos são ágeis e cheios de complexidade no sentido de providenciar níveis diferentes a preencher o palco. As evoluções são surpreendentes e as finalizações nas trocas de cena são um ganho ao trabalho da direção geral, essa já elogiada. No mesmo sentido, a direção musical de Marcelo Farias, com orquestrações de Guilherme Menezes evocam os velhos musicais, apresentando um novo aos ouvidos brasileiros, com um número bastante limitado de músicos. Cheio de desafios vencidos, o mérito é ainda maior.
Com cenários e figurinos de João de Freitas Henriques, visagismo e caracterização de Vitor Martinez e iluminação de Anderson Ratto, trabalhos esses já elogiados acima de forma indireta, “The book of Mormon” tem produção de Bruno Adnet, Marcelo Albuquerque e Bruno Torquatto, a quem deve-se agradecer pelo bonito resultado dessa parceria entre a UNIRIO e outras universidades, mas principalmente pelo patrocínio da Cesgranrio, fazendo a diferença essencial nesse projeto completamente sem fins comerciais.
O sucesso de “The book of Mormon” desde a sua estreia na Urca pontua para sempre o fato evidente de que o teatro estudantil tem tantas chances de ser bom quanto o teatro amador ou profissional, pois a avaliação é sempre da ordem da estética e nunca por sobre o modelo de produção. Aplausos efusivos e votos de vida longa à montagem e ao projeto Teatro Musicado do Prof. Rubens Lima Jr..
Ouça aqui a trilha sonora original.
Que maravilha.... o sucesso continua!!!
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