segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Venus em visom (RJ)

Pierre Baitelli e Bárbara Paz em cena
Foto: divulgação

Primeira grandeza 


“Venus em Visom” apresenta dois excelentes trabalhos de interpretação e consequentemente um brilhante resultado de direção cênica. O texto de David Ives, que recebe elogios mundiais desde a sua estreia em 2012 em Nova Iorque, é ponto de partida para um investimento teatral de altíssima qualidade. Em uma noite chuvosa, uma atriz (Bárbara Paz) chega atrasada para um teste para um papel em uma nova produção teatral, sem nem mesmo estar devidamente inscrita na seleção. Já cansado, o dramaturgo (Pierre Baitelli) já não tem forças para negar-se em recebe-la. A partir daí, três seções narrativas diferentes se abrem: 1) da ordem do encontro entre a atriz e o autor; 2) da ordem do texto da peça que há de ser produzida e para a qual o teste se faz; e 3) da ordem do universo particular de cada um dos dois personagens. Em equilíbrio, os três setores se alternam, revelando significados que, aos poucos, vão modificando o ponto de vista uns sobre os outros e, juntos, sobre a peça inteira. A direção de Hector Babenco garante a tensão até o momento final, oferecendo motivos para a acomodação narrativa e, logo depois, para a desacomodação, pincelando delicadamente novas chaves que movem a história para o seu fim. Para quem gosta de bom teatro, é um prazer assistir a uma produção cujo jogo interpretativo é tão soberbo. A peça está em cartaz no Teatro Leblon, zona sul do Rio de Janeiro.

A impressão que se tem ao sair do teatro é a de que Bárbara Paz nasceu para fazer esse personagem. Talvez mais do que acontece com outras intérpretes, a forma como Paz atinge o reconhecimento ano após ano é acompanhado pelo país desde sua aparição nA Casa dos Artistas, anos atrás. Desde lá, sabe-se de seu empenho em ter apenas aquilo que merece: a dignidade em uma profissão nem sempre tão valorizada. Ao assistir-lhe, mesmo uma análise estruturalista como essa, que não costuma considerar nenhum elemento que esteja de fora da obra artística, não consegue não relacionar a atriz com a personagem que ela interpreta. Isso porque Wanda, a personagem, é como Paz, uma atriz, sendo que a principal diferença que divide ambas é o fato da primeira ainda não ter conseguido o que merece e a segunda, aparentemente, sim. Essas informações, dessa forma, pairam na distância entre o público e a performance de Bárbara Paz interpretando Wanda com ganhos positivos à obra: torce-se por Wanda talvez mais do que o seria fosse a personagem interpretada por outra pessoa. Nesse sentido, o personagem do dramaturgo (Baitelli) é ainda mais algoz.

Paz e Baitelli percorrem os diversos níveis de expressão várias vezes. Da irritação exagerada do telefonema inicial à aparição comedida da Venus em uma versão Marlene Dietrich, os dois personagens são vistos cada vez mais em sua totalidade significativa. A história individual da atriz e do dramaturgo, a situação do teste (em que um se esforça para provar para o outro o valor do seu trabalho) e a história que une os personagens da peça dentro da peça não tem limites claros, de forma que, em vários momentos, as quebras são sutis. O efeito é cinematográfico, pois é somente porque o 24 quadros por segundo dão a impressão de continuidade que a ação na tela grande existe há mais de cem anos. No teatro de Babenco, o espectador, que não tem a variação em planos mas vê tudo sempre em plano geral, demora um certo par de segundos para entender o fim de uma cena e o início de uma outra e é essa zona de indefinição que alavanca o jogo de tensões. A suscetibilidade da atriz que chega no fim de um dia de testes vai revelando uma mulher mais forte do que parece. Por outro lado, o jovem e pedante dramaturgo vai deixando transparecer insegurança exposta pela sua irritabilidade. O espectador de “Venus em visom”, assim, há de perder boa parte da peça se não fruir com cuidado os muitos detalhes que Babenco, Paz e Baitelli disponibilizam: o tom de voz variável, a flexibilidade corporal em expressar tonos diferentes ao mesmo tempo, a capacidade de expressar a crítica e o distanciamento.

Sobre o grupo de artistas que assina os elementos outros da encenação (cenário, iluminação, figurino e trilha sonora), vale dizer que “Venus em visom” garante quadros sonoro-visuais de rara beleza. Do couro às peles, do espartilho ao suspensório, do vermelho às meias xadrez, o espectador tem diante de si uma obra visual e sonora quase tão positiva quanto também o espetáculo é enquanto teatro e dramaturgia. Parte do projeto Vivo EnCena, uma preciosa iniciativa da Vivo para as artes cênicas, eis aí uma peça de primeira grandeza. 

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Ficha técnica
Texto: David Ives
Tradução: Daniele Ávila Small
Direção: Hector Babenco
Elenco: Bárbara Paz e Pierre Baitelli
Direção de Produção: Cinthya Graber e José Carlos Furtado Filho
Cenário: Bia Junqueira
Figurino: Antônio Medeiros
Iluminação: Paulo César Medeiros
Projeto de som: Andrea Zeni
Relações Públicas/ Convidados: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Assessoria de imprensa: Liège Monteiro e Luiz Fernando Coutinho
Uma produção: Cinthya Graber e José Carlos Furtado Filho

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