segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O Pastor (RJ)

Kátia Camello, Alexandre Lino e
(no chão) Cesario Candhi em excelente
trabalhos de interpretação
Foto: divulgação

Mais do que ótimo, um espetáculo necessário!

O espetáculo “O Pastor” é uma das produções mais empolgantes do ano no teatro carioca, porque, ao sair do espetáculo, a vontade que se tem é de vê-lo apresentado Brasil a fora para públicos cada vez maiores. Isso sentido, porque: 1) o espetáculo é bom esteticamente; 2) é também bom socialmente. Ou seja, ao mesmo tempo em que a peça age em prol de uma reflexão estética, propondo uma discussão acerca de como o homem percebe a obra artística, também ela sugere um debate importantíssimo sobre como o neopentecostalismo age criminalmente nas mentes, nos corações e principalmente nos bolsos dos menos favorecidos. Com texto de Daniel Porto e direção de Carina Casuscelli, o espetáculo conta no elenco com Alexandre Lino (Pastor Antônio), Kátia Camelo (Irmã Janaína) e com Cesário Candhi (Paulo). Está em cartaz no Espaço 2 do Solar de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro.

Comecemos pelos valores estéticos. O maior ganho da peça é o esforço manifesto em apagar qualquer marca de teatralidade que seja da ordem do teatro propriamente visto. Bastante feliz, a decisão deve ter vindo da consciência de que o tema já é, por si só, saturado de teatralidade no sentido ritual-religioso da palavra. Ao abster-se de mostrar que está fazendo “teatro”, o espetáculo expõe “o teatro” que há no culto religioso neopentecostal, assim, “O Pastor” se aproxima tanto do seu referente que acaba por critica-lo de maneira ímpar e bastante positiva. É interessante observar igualmente o lugar do público nesse espetáculo. Embora tudo o que aconteça no palco seja igual ao que acontece nos púlpitos evangélico-neopentecostais, na plateia do teatro, os acordos seguem sendo diferentes: a) o público de “O Pastor” foi ao teatro ver uma peça e não à igreja orar para o seu deus; b) o público que vai ao teatro vai para se entreter, podendo esse entretenimento ser cômico, dramático ou reflexivo. O público que vai à igreja vai para pedir, para agradecer ou para cumprir uma obrigação assumida com o seu deus e sua comunidade religiosa; c) o ator interpreta um personagem diante de um público (teatro), enquanto, numa igreja, o pastor (ou padre) celebra um rito religioso (profissão/vocação), sem grandes marcas que distinguem o homem fora do ato profissional/religioso do homem no ato profissional/religioso (o ator interpreta um personagem; o professor, o motorista, o padre, o médico assim o são mesmo encerrado o expediente profissional). Essas três diferenças autorizam o público que está diante do personagem “Pastor Antônio” a criticá-lo, a não contribuir com o dízimo, a não dar as mãos para os demais, a não rezar, não cantar, enfim, a apenas assistir passivamente à peça. Essa autorização é vital para a manutenção do distanciamento, sentimento esse que assinará a evolução das distâncias e das proximidades entre a peça “O Pastor” e qualquer outra igreja evangélica neopentecostal que exista além da narrativa. Por construir essa situação estética de forma tão bem amarrada, com excelência magnânima nos trabalhos de interpretação de Lino, de Camello e de Candhi, mas também nos de cenário e figurino (Karlla de Luca), direção musical (Alexandre Elias) e de videografismo (Marcio Thess), a peça apaga qualquer dúvida sobre seu realismo e oferece terreno seguro e confortável para a pura e boa fruição.

Quanto ao valor social, “O Pastor”, porque evidencia as marcas de teatralidade do rito neopentecostal, deixa claro a sua artificialidade capciosa. A música que trilha a entrada do público é uma canção de penitência, reforçando a culpa como sentimento vital à oração (é preciso que o homem se diminua diante de deus). A oração do “Pai Nosso” com a letra projetada no telão inclui todos os presentes em uma só letra, construindo a imagem de igualdade. A citação, no cenário, da Arca da Aliança e da Menorá, ao lado da leitura dos Salmos de Davi, são sinais de uma suposta ligação direta entre o Deus de Israel e o povo presente. Esses símbolos de origem judaica ficam em paralelo às citações do Evangelho e das epístolas de Paulo e de Tiago, e também ao lado de ritos de desobsessão, de coreografias em que o pastor gira pelo palco como nos ritos afro-religiosos e também ao lado da interpretação de paródias de músicas laicas com letras cristãs. O sincretismo religioso, em definitivo, é marca do neopentecostalismo, esse suspostamente aberto e acolhedor para o homem de todas as origens. Por fim, a exortação ao dízimo, às ofertas financeiras, à compra de objetos religiosos, isso tudo aliado a um Pastor que usa relógio e anel de ouro, camisa da Lacoste e calça de boa alfaiataria define o vínculo dessas crenças à Teologia da Prosperidade. De posse da autorização à crítica em paralelo à realização do rito e sua fruição/participação, o espectador consegue evidenciar como, nesse ritual religioso-teatral, todos os elementos são articulados com fim ao estabelecimento de um acordo financeiro entre o fiel, seu deus e sua comunidade sem o qual o crente não ficará livre da culpa despertada desde o início. Por propiciar essa reflexão, “O Pastor” é um espetáculo necessário num tempo em que igrejas se multiplicam em garagens e em barracões, abertas por pastores ávidos por pessoas em busca de melhora em suas situações afetivas, financeiras e da ordem da saúde.

Simples, despretensioso, sutil, “O Pastor” fornece bases para a crítica sem tomar partido. O espetáculo começa tal qual começa um culto neopentencostal e termina como também ele termina. O teatro, como na sua etimologia, está no olho de quem vê. Excelente!

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Ficha técnica:
Texto: Daniel Porto
Direção: Carina Casuscelli
Elenco: Alexandre Lino, Kátia Camello e Cesario Candhi
Direção musical: Alexandre Elias
Direção de produção e Argumento: Alexandre Lino
Cenário e Figurinos: Karlla de Luca
Iluminação: Cristiano Gonçalves
Produção executiva: Daniel Porto e Mariana Martins
Programação visual: Guilherme Lopes Moura
Videografismo: Marcio Thess
Webdesigner: Mariana Martins
Operação de luz: Raisa Mousinho
Operação de som e de vídeo: Diogo Pivari
Assessoria de imprensa: Mais e Melhores
Idealização e Realização: Cineteatro Produções

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