sábado, 14 de setembro de 2013

Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares (RJ)

Anna Machado é uma grata surpresa
como atriz em "Paraíso Agora!"
Foto: divulgação

Tem que ver!

A Cia. Guerreiro marca a sua participação na programação teatral carioca com um dos melhores espetáculos já vistos em 2013. Na plateia de “Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares”, o espectador sabe que está assistindo a uma produção rara na oferta de espetáculos da capital do Rio de Janeiro. Eis um "espetáculo de grupo”, com a força, a visceralidade, com uma estrutura forte e potente que se manifestam por vias cênicas na narrativa de uma história. Adaptação do célebre longa metragem brasileiro “Prata Palomares”, de 1971, do Teatro Oficina, dirigido por André Faria, com roteiro dele e de José Celso Martinez Corrêa, a peça tem dramaturgia assinada por Íttala Nandi e por Jorge Farjalla, com direção do segundo. Trata da história de dois revolucionários brasileiros a caminho clandestinamente de uma frente de batalha. No caminho, passam por Porto Seguro (não necessariamente a capital nordestina) e se escondem em uma igreja cujo padre acabou de morrer. Enquanto aguardam por um sinal que será transmitido via rádio (ou “Eu vou pra Maracangalha” ou “As curvas da estrada de Santos” será tocada. Cada uma delas indica informações diferentes a respeito da luta), um deles resolve ocupar o lugar do padre morto e, assim, ganhar tempo para a construção de um barco que os levarão até o destino e obter mais informações sobre a revolução. Começa o conflito: mesmo machucados, cansados e famintos, deverão dar continuidade à manifestação ou servir-se das estruturas sociais (e comodidades) já estabelecidas para promover a mudança? Mais emocional, um dos revolucionários quer partir. Mais racional, o outro quer ficar. Por esses momentos, ambos entram em contato com a comunidade local – um prefeito fraco, uma família oligarca, uma polícia burra, um povo que convive entre o catolicismo e o candomblé, os prazeres e os ideais, as necessidades do todo e do indivíduo. O filme foi censurado por anos porque fazia óbvia referência à ditadura militar do Brasil (1964-1985). A peça, por sua vez, encontra eco claro e inevitável nas manifestações de junho último, quando o “Gigante acordou” e o pedreiro Amarildo ainda não apareceu. Nesse sentido, ver “Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares”, além de ser um dever estético, pela beleza de sua construção, torna-se também um dever social, pois a peça sugere a reflexão sobre que tipo de manifestantes somos, os dos milhões de compartilhamentos de imagens e de notícias via redes sociais, os que acampam na frente do palácio do governador, os que se pautam pela mídia estabelecida ou os que vão ao Rock In Rio, à Jornada Mundial da Juventude e à Copa das Confederações como forma de esquecer do que está acontecendo na política nacional? Todos, afinal, temos responsabilidade e o conhecimento não nos dá outra opção. Em cartaz no Galpão das Artes, no Jardim Botânico, além de excelentes interpretações, sobretudo de Anna Machado e de Ipojucan Dias, o espetáculo tem excelente articulação de cenas pela direção firme e criativa de Jorge Farjalla na viabilização da narrativa. É imperdível. 

“Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares” se constrói a partir de uma simbologia potente. A peça se passa, quase toda ela, dentro de uma igreja, lugar onde os homens se encontram com deus e em que Deus, no caso dos católicos, se faz homem (corpo e sangue). Assim, em termos narrativos, o lugar cênico é metáfora para o conflito entre os dois revolucionários (Jorge Farjalla e Ipojucan Dias). Nossa Senhora das Dores (Anna Machado), padroeira da Igreja, é também uma prostituta que tinha filhos do padre agora falecido, sendo ela quem narra a história, primeiro exortando a chegada dos rebeldes, depois expulsando-os dali. O branco que marca A Família de Branco é a irônica menção à burguesia do telefone branco, do cinema neorrealista italiano, aficionada por televisão, língua inglesa, cristianismo e por posses. Os Homens de Preto, soldados, servem à polícia e também fazem relação às regras do comportamento em espaçonaves aéreas e todo o esquema politicamente correto do século XX. O sacristão efeminado, o cego que tudo vê, a índia currada, o prefeito de cetim, o embaixador americano sequestrado, tudo é referência nessa montagem alegórica que a Cia. Guerreiro oferece ao público carioca (e brasileiro). Farjalla, na direção, dá a ver um excelente uso do tempo no jogo das cenas com o espaço e entre os atores. O público, sentado em bancos de igreja, está parcialmente virado para o altar, sem ficar totalmente de costas para o fundo. Cenas acontecem em todos os ambientes de forma que a troca de um quadro para o outro é líquida, fluída, extremamente bem articulada. A quantidade de informações e a potencialidade significativa de cada signo posto em cena são tão grandes que gera-se o sufocamento. Esse, por sua vez, dá a sensação amoral de realismo naturalismo, em que não se julga nada sem considerar o contexto, estando os personagens dentro um ecossistema, nem vítimas, nem culpados, mas seguidores do próprio instinto. O resultado é o julgamento não desse ou daquele personagem, mas do público, atrasando a catarse, mas mantendo a identificação perfeitamente. 

Temos aqui excelentes trabalhos de interpretação. Já citados, Anna Machado (Santa Prostituta) e Ipojucan Dias (Revolucionário) são fortes em cena, corajosos, íntegros. Seus corpos estão disponíveis, seus desenhos de diálogos e de movimentação gestual/corporal conduzem a história com firmeza, sensibilidade. Dias dá a ver um misto de romantismo e de masculinidade que é carismático, vivo, admirável, porque representante do idealismo. Machado, cuja voz tem uso magnífico, é delicada e, ao mesmo tempo, fundante nas cenas de diálogo e de canto. Ao lado deles, temos outras figuras menores, mas definitivamente marcantes. Ana Débora Goal (Índia e Devota de Branco), Eval Fídias (Sacristão), Jaqueline Farias (Mulher Ensanguentada) e Claudio Albuquerque (Tonho), com expressões bem claras, mas não menos sutis, dão ritmo na narrativa, porque mudam de personagens, sem tirar-lhe nem a força, nem a profundidade. Vale um destaque também para Diogo Pasquim e para Mathias Schmeisser (os soldados) que, ao lado do grupo responsável pela trilha sonora (executada ao vivo) são grandes “colunas” para esse todo artístico. 

Jorge Farjalla interpreta o revolucionário que se veste de padre. Como a maior parte do elenco, sua construção é forte, seus usos dos tempos e dos movimentos de olhar são bons, sua presença é firme, importante sobretudo porque é ele quem movimenta a história na medida em que é seu personagem que passeia pelas “galerias sociais” expostas na dramaturgia. Há, no entanto, uma força equivocada na sua interpretação. Farjalla sustenta um personagem uma oitava acima de todos os demais, tomando para si um protagonismo que não é seu. Como apresentado no parágrafo de abertura, o conflito aparece pela oposição entre os dois revolucionários. Ao manifestar um personagem cuja curva dramática praticamente não se vê, temos uma “briga” injusta. Em outras palavras, Farjalla, em seu trabalho como ator aqui, esbarra pouco na situação limite do seu Revolucionário, coloca-o pouco em situação problema, em dúvida, infelizmente. O resultado dessa concepção pesa a narrativa e faz da peça um flerte com a descrição galerista do teatro alegórico medieval, que pode ser referência, mas é meramente museológico enquanto atualização. 

O figurino e os adereços de Rogério França são um dos pontos altos de “Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares”. Das roupas cheias de detalhes estético-significativo-comunicacionais, aos banhos de sangue que também vestem, aos chapéus e sapatos, não há um só detalhe que mereça passar despercebido. Por si só, sua obra conta uma história cuja potência diegética é especialmente magnifíca. No mesmo bom sentido, a trilha sonora interpretada pelo grupo (e não presente na obra fílmica) é excelente em termos de escolhas musicais, mas também de reprodução ao vivo, com destaque para a direção musical e preparação vocal de Mimy Cassiano. São positivos o cenário de José Dias, do qual faz parte a concepção dos bancos onde o público senta e o cheiro de incenso do ambiente, e a iluminação de David Israel e de Farjalla: ainda que com participações mais discretas, os dois elementos formam quadros belíssimos. 

Apesar de alguns discursos serem longos demais e, por isso, se perderem em meio aos sons das palavras e de todos os detalhes com que a peça se dá a ver, o texto (dramático e cênico) de “Paraíso Agora! – Ou Prata Palomares” deve ocupar um lugar bastante especial na lista dos melhores espetáculos do ano. Seu vigor, além de todos os detalhes estéticos já apontados, fazem dessa produção um caminho obrigatório para quem gosta de bom teatro, mas sobretudo para quem está interessado em pensar a cultura de um jeito mais responsável além de se entreter. Aplausos efusivos!

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Ficha técnica
Direção e roteiro musical: Jorge Farjalla
Texto original: André Faria e José Celso Martinez Corrêa
Dramaturgia: Ittala Nandi e Jorge Farjalla

Elenco: Ana Debora Goal, Anna Machado, Claudio Albuquerque, Diogo Pasquim, Eval Fídias, Helio Souto Jr., Ipojucan Dias, Jaqueline Farias, Jorge Farjalla, Matthias Schmeisser, V. Murici, Victor Vaughan e Zímara 

Direção musical e preparação vocal: Mimi Cassiano
Supervisão musical: João Paulo Mendonça
Cenografia: José Dias
Figurinos e adereços: Rogério França
Iluminação: David Israel e Jorge Farjalla
Músicos: Bruno Scantamburlo (violão, guitarra e baixo), Julia Ludolf (percussão), Rodrigo Viegas (violão) e V. Murici (rabeca)
Direção de Produção e Produção Executiva: Edmar Caetano
Assessoria de Imprensa: Debs Comunicação
Realização: Cia Guerreiro e Nandi Produções

Um comentário:

  1. Faltou na ficha técnica o nome do diretor de produção : Edmar Caetano

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